MIOLO
DE PÃO
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Carla
Deboni
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Às vezes aconteciam coisas sem que ela precisasse inventá-las. Como no dia em que Poli se foi. Era mais uma tarde no parque. Mais um dia de sorvete de morango. Sem falar do bambolê e do esconde-esconde atrás dos eucaliptos. Não se lembrava da última vez em que vira a cadela. Poli estava lambendo a pata embaixo do banco ou correndo atrás de um sabiá? Não sabia. Só sentia que agora doía. Depois de gritar o nome do animal repetidas vezes, a voz rouca, deixou o corpo de oito anos descansar na grama e chorou. Soluçou a tarde toda, sem coragem de voltar sozinha para casa. Até que o cansaço venceu as lágrimas e a menina se foi, chutando as pedras na esperança de ouvir o tão querido latido, mesmo que fosse na sombra do abacateiro, logo no portão. Não quis responder as perguntas da mãe, tampouco os gracejos do irmão. Só abria a boca para enfiar o pão acebolado direto no estômago. E a vontade de pegar o miolo do pão, fazer uma bolinha e dar para Poli sem que a mãe visse... Mas Poli não estava ali. Talvez nunca mais estivesse. Teria que arrumar uma alternativa para essa bolinha salgada e sem graça. E os dias se foram... O osso com a última mordida da cadela continuava no quintal, como um lar à espera do caseiro. E ninguém se atrevia a tirá-lo de lá: a menina logo abria o berreiro. Passaram-se anos. Veio o primeiro amor. O segundo amor. O terceiro amor. O osso perdeu a importância, nunca mais foi até aquele canto do jardim. Um dia, passeando com o namoradinho, viu que uma cadela a lambia desesperadamente. Irritada, sentiu medo e nojo do animal. Escondeu-se atrás do rapaz, que logo mandou a cadela passear. Depois de gritar o nome da dona repetidas vezes, a voz rouca, deixou o corpo de oito anos descansar na grama e chorou. Soluçou a tarde toda, sem coragem de voltar sozinha para casa. Até que o cansaço venceu as lágrimas e a cadela se foi, levando na boca um pão acebolado, na esperança de ouvir o tão querido chamado, que nunca mais veio. Porque os corações são assim. Sempre insatisfeitos. |
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