De onde vem esse medo de não se bastar? De onde vem a janela fechada num dia de sol? De onde vem esse desejo de ligar para você no meio da noite? De onde vem essa vontade de rir cada vez que você toca na ponta do meu nariz? De onde vem o cheiro da casa quando entramos nela pela primeira vez? De onde vem a travessura de espiar outro coração para descobrir se ali também há cacos? De onde vem esse ímpeto de ser linha reta quando sempre caio num traçado descontínuo? De onde vem as amputações violentas e essa cicatriz que nunca aparece? De onde vem essa sensação de estar habitada quando tudo o que ouço é um eco logo na porta de entrada? De onde vem essa velha tristeza satisfeita de voltar a ser a de sempre? De onde vem as recordações que só chegam para deixar o passado menos atraente? De onde vem a teimosia em prolongar o que deveria acabar logo no primeiro instante? De onde vem a água que apaga o nome escrito com giz na calçada? De onde vem o primeiro furo na roupa velha? De onde vem os cinco minutinhos da preguiça de levantar? De onde vem a solidão da hipotenusa na queda de braço com os catetos? De onde vem essa suspeita de que o invisível também é real? De onde vem o labirinto que me traz notícias suas sem mostrar onde você se esconde? De onde vem o pedaço que perdi há tempos e que de repente reencontro sentado no alpendre? De onde vem essa crença nostálgica em um Deus nunca atingido? De onde vem o atraso da dor na hora do tropeço no jardim? De onde vem a velocidade da treva, quando não encontro a da luz? De onde vem essa chuva que não traz você em uma das nuvens? De onde vem essa fisionomia nova que me assusta quando olho no retrovisor? De onde vem esse silêncio quando as sílabas já estão sendo mastigadas? De onde vem essa habilidade em fazer-me esquecer? De onde vem essa pressa inútil de chegar que faz da vida um eterno cansaço? De onde vem essa vontade de repetição? De onde vem a beleza de tudo aquilo que é protegido pela distância? De onde vem essa falta de vocação para a vida? De onde vem a fragilidade da paz?

De onde vem essa falta?