Tema 183 - Besteirinhas
BIOGRAFIA
SOMBRAS NA PAREDE
Pedro Brasil JR

A primeira vez que a vi, ela estava debruçada no peitoral da janela no alto de um sótão.

O sorriso espontâneo mexeu de imediato com os mistérios ocultos nas profundezas do meu ser.

Talvez tenha sido uma dessas paixões inexplicáveis, embora tivesse sido por longo tempo, nada mais do que um amor platônico.

Por inúmeras vezes passei naquela rua com o olho curioso naquela janela. As vezes fechada para minha decepção. Outras vezes aberta mas sem a presença dela. Mas aconteceram ocasiões em que fui premiado com aquele sorriso franco e de certo modo bem maroto.

Os tempos eram outros e para se aproximar era preciso estudar o território e ensaiar as palavras certas, como um script de novela. Tive mais sorte quando um dia, peguei o ônibus e lá estava ela.

Ficamos trocando olhares durante todo o trajeto e ao desembarcar arrisquei uma fala gaguejante.

Caminhamos por duas quadras naquele diálogo de detetive, os dois só fazendo perguntas.

Passaram-se os meses e esporadicamente a gente se via e agora até um aceno era permitido. O coração saltitava cada vez que eu a via e passei a alimentar aquilo como se fosse uma grande aposta no futuro. Essas coisas que não se explicam mas que dizem que o amor explica...

Com os amigos, a gente comentava sobre esta ou aquela e cada um tinha por certo um objetivo traçado. Mas no fundo, a maioria acalentava um sonho com ela, fosse da maneira escolhida.

Surgiam boatos de que ela não era a mulher ideal, que haviam suspeitas sobre o seu comportamento e por ai afora. Mas que ela encantava a todos, era indiscutível.

Pensava-se besteiras a respeito dela, ainda mais que era de fato um mistério.

Primeiro que havia aparecido repentinamente e depois, porque sabia provocar nossos instintos e causava verdadeira revolução hormonal.

Éramos jovens e as idéias todas eram um dicionário de absurdos.

Daquela turma, se bem recordo, todos tinham apenas uma vaga idéia do que era sexo e de como se fazia. De concreto mesmo, tínhamos a noção de que mais cedo ou mais tarde, constituiríamos uma família e por ali, estavam os primeiros passos.

Ao longo do tempo, muitos foram arrumando namoradas e tendo suas experiências escondidas à sete chaves.Havia uma ansiedade completamente insana e todos saiam dia após dia feito farejadores de raposas.

Pois bem; ninguém mais falava a respeito dela e de seus mistérios exceto um famoso bêbado da região que quando turbinado tinha até o poder de advinhar as centenas do jogo do bicho. Era implacável e fazia disso o seu ganho. Certa vez, enquanto jogávamos bilhar, alguém relembrou da mulher misteriosa e o bêbado foi logo se metendo no assunto, dizendo que à noite, através dos vidros daquela janela, podia-se ver silhuetas provocantes dela e de seu amante. Tudo à luz de vela e decididamente picante.

Em princípio, pensamos todos que era uma grande besteira mas decidimos espiar para comprovar. A suspresa não foi das maiores porque já sabíamos e ficamos observando aquelas sombras que não diziam absolutamente nada. As vezes dava a impressão de ser uma pessoa ou duas. As vezes dava a impressão de ser um monstro talvez...

A imaginação nos permitia ver o que desejávamos e isso provocava discussões acirradas.

O tempo continuou sua dança e fomos, cada um buscando o seu norte em busca das realizações pessoais.

Uma tarde, no entanto, quando eu regressava para casa, despencou o maior aguaçeiro e fiquei sob uma marquise esperando acalmar a chuva para poder seguir meu rumo. De repente, eis que surge do nada aquela mulher misteriosa com seu sorriso provocante e agora, molhada da cabeça aos pés.

Ficamos ali por uns vinte minutos e desta feita, a conversa foi bem aberta, como se nos conhecessemos há anos.

Eu estava hipnotizado e ao diminuir a chuva ela me convidou para ir até sua casa, onde poderíamos nos secar. Veio a dúvida mas acabei aceitando. Quando dei por mim estava justamente naquele quarto onde a imaginação havia criado tudo o que era possível, exceto o que era a realidade.

Tudo muito simples e numa cômoda havia um lampião que deduzi ser o responsável pelas imagens refletidas.

Ela me estendeu a mão com uma toalha felpuda e pediu para que eu enxugasse suas costas. Minhas mãos tremiam e aos poucos ela ia tirando a roupa. Logo estava nua, com uma pele alva de pêssego e aquele sorriso malicioso. Eu já não sabia se era verdade ou se era sonho. Aos poucos, sem dizer mais nada, ela foi me despindo e logo estávamos lá, entrelaçados e entregues ao próprio tempo. As horas passavam embora o tempo estivesse parado e éramos agora dois corpos em total volúpia e mergulhados em beijos, carícias e aromas indefinidos .

Agora a chama do lampião flamejava ali perto e realmente, criava sombras esquisitas pelas paredes e por certo, refletia lá fora todo um mistério que eu agora vivenciava de perto em mais uma dessas fantásticas descobertas que impulsionam a vida.

Tudo naquele momento eram chamas ardentes, consumindo os desejos, fazendo esquecer da vida lá fora, fazendo lembrar que os sonhos muitas vezes podem ser reais e nos transportar para o além-jardim.

Um encontro apenas! Inesquecível e desafiador. Ela foi embora, sem um adeus, sem um sorriso, sem uma desculpa e sem culpas também. Deixou para os outros a possibilidade de seus pensamentos insanos e para mim, a certeza de que as ilusões, muitas vezes são sombras nas paredes projetadas pela chama de um pequeno lampião.

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