O
INÍCIO DE UM ESPIRRO
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Carla
Deboni
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Ainda tento descobrir de onde vem essa vontade de conversar com você, que talvez nem se lembre mais de mim. Mais estranho ainda é não conseguir nem mesmo retomar os últimos traços de seu rosto e mesmo assim lhe trazer confidências no café-da-manhã.
Acostumada que estou ao meu constante estado de transição, já não mais quero as coisas permanentes: prefiro a confusão de toda revolução ainda no início. E continuo com meus recortes de revistas, esfarelando sob o toque da tesoura, tão perdida quanto meus pés no caminho aparentemente retilíneo.
Ainda ontem ouvi aquela música do ABBA e me lembrei dos tempos das carteiras enfileiradas na sala de aula. Uma repentina saudade do cheiro do giz e do caderno recém-aberto, com tantas linhas num desafio tão evidente. E pensar que eu nem desconfiava que naquela brochura estaria o meu refúgio mais paciente. Talvez o portal mais próximo para chegar até você.
Gostaria que não tivesse perdido minha formatura. Vestido criteriosamente escolhido, os cabelos feito uma dama, os lábios pela primeira vez de fato pintados. Lembro-me do olhar de meu pai a me contemplar e de início não compreendi suas lágrimas. Acreditei ser a emoção do inadiável rito de passagem logo ali, nas formas adultas da menina que ainda ontem colocava para ninar. E foi quando notei sua presença pela vez primeira em mim: Você está a cara da sua mãe.
E ao me olhar no espelho não me vi a mim mesma e enxerguei você: nos olhos pequenos, levemente puxados, como no início de um espirro. O sorriso tímido, ladeado de curvas delicadas e espontâneas, como se guardasse em algum canto as gargalhadas de cócegas iminentes. E talvez naquele suspiro eu fiz ressurgir o seu último pedido, o primeiro das minhas três promessas. |
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