O CAMINHÃO FANTASMA
Pedro Brasil
 
 

A chama do lampião oscilava produzindo pequenas sombras nas paredes da cozinha. No fogão, a lenha úmida ardia em choro enquanto aquecia o ambiente e deixava a água na chaleira sempre quente, pronta para um chimarrão.

A lua cheia iluminava o arvoredo e dava uma estranha vida aos capões misteriosos, onde os mochos iniciavam suas caçadas noturnas. Sentado na varanda, ainda que alguns pernilongos incomodassem, divagava o homem a respeito daquela existência solitária, antes pelos estradões e agora, na tranqüilidade de um sítio conquistado com o fruto de tanto trabalho e de incríveis aventuras.

Ouvia, lá de vez em quando, em meio aquele magnífico silêncio o ronco de um fenemê singrando o estradão e desafiando a madrugada.

Dali, confortavelmente recostado em sua cadeira de palha, ficou imaginando quem estaria agora, como ele há tantos anos atrás, desafiando os perigos da noite naquelas estradas sem fim, cheias de buracos, impregnadas de poeira nos dias quentes e de uma lama traiçoeira nos dias de chuva. Lembrou também dos jogos de correntes que por tantas vezes se viu obrigado a usar para poder vencer alguns trechos. E riu sozinho a respeito de ocasiões em que entrou em pequenas cidades, com ruas feitas de paralelepípedos, devidamente acorrentado e causando aquela quebradeira das pedras.

Bons tempos, apesar de sofridos!

E na distância, em meio ao silêncio da noite, o ronco do caminhão distante e a troca de engrenagens o levaram a pensar também, por onde andaria aquele velho companheiro de tantas lutas e batalhas vencidas.

A vida - pensou - é uma ponte entre os sonhos e a nossa realidade. E deu um suspiro profundo enquanto a lenha estalava lá no fogão.

E os amigos da estrada? O Zé da oficina, o italiano do restaurante, o borracheiro cearense, sempre com uma história debaixo do velho chapéu? E as meninas de amores esporádicos, contando causos, bebericando uma purinha, às vezes até dançando?

O tempo rodou com ele por incontáveis estradas, levando no bruto um pouco de tudo. E as jornadas todas lhe renderam ao menos uma velhice tranqüila naquele lugar tantas e tantas vezes sonhado enquanto o caminhão fazia todos os esforços para superar uma serra.

Pegou um tição em brasa e acendeu um cigarro. Ficou observando as sombras projetadas na parede pela luz do lampião e imaginou que fossem fantasmas zombando da sua aparente solidão.

A alusão a fantasmas lhe fez recordar de uma passagem que até hoje, quando conta, ninguém acredita. Mas foi verdade pura.

Ainda jovem e sem experiência nas estradas, certa vez parou num bar de beira de estrada, início da noite e resolveu bebericar um pouco enquanto descansava das tantas horas tocando o caminhão. Foi então que apareceram umas moças rindo à toa, fizeram certa fosquinha e ficaram por perto observando o estranho. Outros caminhões foram parando e o lugar foi aos poucos sendo tomado por todo tipo de gente. De repente, um sujeito apareceu na sua frente com um punhal e foi desafiando para uma briga. Apesar do susto, ficou apenas quieto e ouvindo tudo o que o indivíduo gritava. O problema estava relacionado com as meninas que supostamente devem ter dito ao valentão que ele havia mexido com elas. As suas chances eram mínimas diante do tamanho do camarada e da agilidade com que manuseava aquele punhal. Provocou de todas as maneiras e repentinamente alguém surgiu do nada e num golpe de extrema agilidade colocou o valentão no chão e dele retirou a arma.

Desentendimento esclarecido, ele tratou de partir, não sem antes agradecer ao parceiro de estrada, um caminhoneiro experiente e forte.

E lá se foi, encarando a noite até chegar a um lugar onde pudesse dormir um pouco e em paz. Encontrou uma parada onde já haviam alguns caminhões estacionados e os camaradas estavam em volta de uma pequena fogueira, tomando chimarrão, contando causos e rindo a valer. Chegou-se de mansinho e já foi convidado para a roda. Ouviu de tudo um pouco, mas o que lhe deixou impressionado foi a história sobre o caminhão fantasma, que segundo o contador da história, existe em muitas estradas e lá de vez enquanto aparece como se fosse de verdade. Daí, quem o segue acaba indo parar numa pirambeira e nem sempre se salva.

Tempos depois, em outro lugar, ouviu história parecida e sempre que viajava à noite, ficava atento afinal; o que menos desejava era topar com um desses caminhões que supostamente "ganham vida" e ficam trafegando só para infernizar os inocentes.

Pois bem; anos mais tarde, quando atravessava um perigoso trecho de serra, avisou lá na frente às luzes de um caminhão. A neblina não era tão densa, mas já incomodava. Resolveu acelerar um pouco e ficar mais próximo. Seria bem melhor e mais seguro, pensava. Mas teve uma surpresa assustadora - repentinamente o caminhão saiu da estrada e desapareceu bem à sua frente. Ele freiou bruscamente e só não caiu no abismo por obra divina. Ficou parado, desceu, olhou por toda a volta e não via nada. A escuridão era densa e a neblina ficava mais forte. As rodas dianteiras estavam atoladas e não iria conseguir sair dali sem que tivesse ajuda de outro caminhão. O jeito era esperar o dia clarear. Deitou, se bateu e o sono não chegava. Estava assustado com o que vira e assim permaneceu ouvindo os sons da noite produzidos pelos bichos. Começou a cochilar e foi nesse exato momento que ouviu um grito de socorro.

Será? -Pensou intrigado.

Desceu do caminhão naquela escuridão e gritou:

- Ei! Tem alguém ai?

Então, uma voz cortou o silêncio pedindo ajuda. E agora? Como saber se é real? Será que me arrisco?

Abriu a caixa lateral de madeira no caminhão, pegou um lampião e tentou ver se enxergava alguma coisa. A voz pedindo socorro não parava. Tinha alguém lá embaixo e ele era a única salvação.

As horas foram passando e a ansiedade tomava conta do seu coração. Sabia agora que um homem estava lá embaixo, mas não tinha como ir até lá naquela escuridão. O jeito era esperar.

No que o dia começou a clarear ele resolveu ir e logo descobriu que um caminhão estava lá embaixo todo arrebentado pela queda. Foram quase 20 minutos de descida pelo mato até que chegou bem perto. O homem estava lá, preso na cabina toda destruída. Pedia por socorro insistentemente, mas ele não podia saber quem era, porque estava preso.

Então gritou:

- Agüenta mais um pouco porque tenho que ir buscar ajuda.

Retornou à estrada e em seguida foi fazendo outros motoristas pararem. Relatou o drama do companheiro de estrada e logo já havia uns 10 homens dispostos a socorrer. Desceram à encosta e quase duas horas de muitos esforços, conseguiram retirar o homem de lá e assim lhe salvar a vida. Qual não foi sua surpresa ao descobrir que se tratava daquele caminhoneiro que um dia havia tomado o punhal daquele valentão.

O homem só lhe agradecia e ele queria saber o que tinha acontecido. Foi então que ele disse ter caído no abismo no início da tarde do dia anterior e que já estava ciente de que iria morrer lá mesmo. Assim, quis saber do rapaz como ele o descobriu e este lhe disse:

- Foi o caminhão fantasma!

- Ora, filho, isso não existe!

- Bem; se existe ou não, o fato é que eu segui durante a noite e por alguns bons quilômetros um caminhão que repentinamente saiu da estrada e caiu bem ali, onde você estava.

Agora, tantos anos depois e ali, recostado em sua cadeira, sorri sorrateiro afinal; a vida já é por si só, uma grande e perigosa estrada. Mas, lá nos céus - imaginou ele - tem sempre alguém disposto a orientar e a proteger - mesmo que seja com um caminhão fantasma.