POÇA D'ÁGUA
Carla Deboni
 
 

Tudo começa com um parágrafo cheio de lacunas e uma pontuação rabiscada. Gosto de escrever cartas para quem não sabe ler: sinto que os analfabetos são os únicos que me compreendem verdadeiramente. Talvez por saberem que busco na obediência das orações o circuito fechado de tudo o que não encontro e que tento amordaçar no papel. Eles não: têm o pensamento livre das ranhuras da escrita, e descansam nas notas de uma valsa ou num canto do jardim. Quanto a mim, as únicas flores que tenho são aquelas onde leio meu destino: a esperança de que o próximo passo esteja no pólen que alguma abelha levará para longe.

Todas as manhãs, sei que estou me esperando inutilmente em alguma praça e acordo como quem procura sua casa depois de uma longa caminhada sob a chuva. Com os sapatos molhados, o único conforto que busco está no bocejar da criança que ouve o sinal da escola e se arrasta pelo corredor com a lancheira na mão direita e os livros escorregando no outro braço.

Tenho medo do que encontro quando vejo minhas fotos antigas. A dificuldade em me reconhecer nos retratos me faz duvidar de que realmente existi. Agora que sou só sombra, vejo em alto relevo a risada infantil que imaginei ter sonhado e somente quando estendo a mão e roço o braço dos homens, percebo que eles também fazem parte de algum degrau da minha realidade.

Às vezes penso que sou como a gota que teima em cair e só se acalma quando consegue calar a rua com uma poça d’água.

E por fim, o amor. Passageiro que após longa jornada por corações só por ele conhecidos pede acolhimento. E depois de aquecido, procura o frio e esculpe artesanalmente as estalactites no teto hospedeiro. Não deixo por menos: eu o guardo dentro de uma caixinha de música e o obrigo a imitar os movimentos da bailarina que rodopia maquinalmente nas memórias, que de tanto serem recordadas, tornam-se gastas. E doem menos.