ELA NÃO ESTÁ COMIGO
Edison Veiga Junior
 
 

Faltam dentes na boca de Nelson, que mora na rua há mais de um ano. Faz quinze dias que não toma banho, diz ele, e não comeu nada hoje. Vestido com trapos, fede. No centro da cidade, não mendiga porque acha indecente; desconversa de como sobrevive. E exala um bafo de quem só consegue suportar o frio – o termômetro marca pouco mais de seis graus às três horas da madrugada – com muita cachaça.

Em seus olhos, a noite é imensa, e triste, e fria. E perigosa. Não dá para dormir direito, é preciso vigiar. O sem-teto em que habita guarda a história paulistana. Uma hora é o Pátio do Colégio, noutra os arredores da Estação da Luz, às vezes está em frente ao Teatro Municipal... Nelson conhece São Paulo, São Paulo é sua casa. Eis o verdadeiro cidadão, aquele que dorme com a cidade, come-a.

Quando Marinês chega ali e vai procurar se esquentar sob o mesmo cobertor surrado de Nelson, ela já trabalhou um bocado. Foram seis clientes das sete da noite àquela hora. Um pagou o dobro, para ter também o cuzinho. Os outros quiseram só o arroz-feijão. Marinês, trinta e quatro anos, aparenta quarenta e cinco. A pele está cansada, o corpo está cansado, e nem a buceta é mais a mesma. Todos os dias é o mesmo ritual. Pagamento adiantado, vinte reais a fodinha básica, meia-hora ou até o cliente gozar, o que acontecer primeiro prevalece. Então leva o sujeito ao quarto muquifo. Uma cama baixa, colchão mole. Fecha a janela que ficara aberta para arejar um pouco o fedor de porra ressequida, e tira a roupa, mecânica. Rebola se esfregando no pau do cara, veste a camisinha rapidamente e se senta. Diz que não sente nada mais. E já perdeu a conta de quantos foram em sua vida, pudera.

Marinês nunca trepou com Nelson. A relação deles é muito carinho para caber sexo. E Marinês não gosta de levar trabalho para casa.

Ela se acha uma mulher de sorte, pois é das poucas que toma banho, mais de uma vez por dia inclusive, das pessoas que moram nas ruas. É a vantagem embutida em seu serviço. Banho por conta da casa.

Nelson ultimamente tem passado o dia na linha B da CPTM. Ele e mais cinco ambulantes. Organizados, respeitam um rodízio em cada vagão. Para apregoarem seus produtos, um aguarda o outro. Sempre quem começa leva vantagem. Nelson vende amendoinzinhos, cinqüenta centavos. E é com Mozart ou Beethoven ao fundo – agora o trem toca música clássica, som ambiente, bem baixinho para ninguém reparar – que ele grita:

- Cinqüenta centavos o amendoim crocante, só cinqüenta centavos.

Lizete vende guardanapos bordados a dois reais, Ademir vende livrinhos de colorir para que pais com consciência pesada por deixarem os filhos sós o dia todo se redimam (um e noventa e nove), Gorete vende chips (um real), Odair vende canetas (três por um real) e Josias vende chocolates (um e cinqüenta cada barra).

Tem dia que Nelson não resiste e come um pacote de amendoinzinhos. Mas só de vez em quando. É preciso vender dez para pagar um.

Hoje, ao chegar em casa, após comprar um amendoinzinho de Nelson e foder com Marinês, desesperei-me ao não encontrar a chave. Ela não está comigo – será que um dia esteve?. E assim, preso do lado de fora, voltei a me deparar com eles pelo mundo. Preso do lado de fora.