O
SONHO E O SANTO
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Lia Abreu Falcão
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[folhetim para os que acreditam - ou num ou noutro]
- Nunca vi um lugarzinho tão apagado feito esse! Até no nome é só tristeza! Homem disposto aqui só se for assombração ou visitante de parente pra morrer. Êita que solteira eu não morro, já disse ao meu santinho! Morro de um tudo, mas de solteirice me renego! E saía mundo afora a descortinar sua desventurança. No dia do padroeiro, ela foi à missa como sempre. Levou dois maços de velas novinhas, umas flores brancas pra agradar o aniversariante entalhado numa madeira amarelinha, quase branca, de pau de jurema pra não dar bicho nem cupim. Sim, porque santo que até cupim dá ninguém bota fé é nunca mais. Pois bem. Nessedia, Soledade estava inspirada. Vestiu-se de roxo, agarrou-se com as velas e as poucas flores, botou um véu novo e lá se foi para a novena das cinco, na Matriz. Antônio, o Santo, cuidou de fazer aniversário justo no dia dos namorados, para suplício e revolta mais antiga de Soledade. [Dizem que é porque ele é um santo muito romântico e por isso escolheu esse belo dia para nascer. Mas há quem desdiga e prove o contrário...] Novena rezada, hóstia engolida, santo assediado, fila furada, moça donzela confessada e na vez. Soledade, nesse dia, ao invés de pedir a bênção ao padroeiro da cidade, desmantelou-se numa zangação com o pobre do entalhado para assombro dos viventes de Solidão. - Me diga uma coisa, seu santinho de pau amarelo: você não acha que é muita cara-de-pau sua se dizer um santo casamenteiro quando o povo daqui de Solidão faz mais de ano que não vê um bolo de noiva? Que qualidade de santice é essa sua que não dá nem pra um casório por ano? E continuava interpelando o pobre do santo enquanto o povo começava a se preocupar com a sanidade mental da moça. Devia estar variando dos miolos para pegar, assim, um santo padroeiro pelo gogó, como estava pegando, e falar essas asneiras pra ele, como estava falando. - E tem mais, viu seu santinho do pau oco, hoje você vai dormir lá em casa que é pra ver como vive um fiel seu. Quero ver se esse amarelo de pau como tu és talhado resistir ao fogo e se fazer de mouco! Ah, hoje tu me pagas! E
Maria da Soledade, antes pacata, pegou nas goelas do santo, Antônio
de nascimento, entalhado por vocação, e lá se foi
para sua morada, fazer o que a procissão atrás dela gostaria
muito de saber. O padre passou mal e logo foi De repente, acudiu o farmacêutico da cidade, homem de brio e que acudia tudo e a todos em homenagem a sua falecida esposa, uma das beatas do padre Inácio. José Liseu, seu nome de pia, era conhecido como Zé de Jura e era meio o médico na cidade: para tudo conhecia uma infusão, um chá, uma compressa. Até pra vício de aguardente ele fazia meizinha e dava garantia de mais de ano, maior até de que a garantia dos casamentos dada pelo santo padroeiro. Por isso o povo o tinha como uma autoridade máxima: menor que Deus mas bem maior do que o Padre Inácio. E ele era homem de palavra: seu apelido de Jura se deu porque jurara nunca mais olhar para mulher após o passamento da sua falecida Antonieta, que Deus a tenha. E não é que Zé de Jura acudia até santo?! - Ô, Soledade! Faz isso com o santinho não! Deixa ele de molho aqui na farmácia hoje! Garanto a você que tenho uma receita nova da capital que é justamente pro cabra tomar tenência. Então, vou dar o remédio pro seu santo. Caso ele durma e amanhã não fizer nada, você dá cabo dele, mas hoje, deixe ele por minha conta, está bem assim?! Tão transtornada ia Soledade com ganas de acabar com aquele santo feito de pau que acolheu logo o pedido do boticário viúvo, como quem ouve uma voz de quem sabe o que é sofrer muito e sozinho: - Tome, pegue logo esse breguesso! Ô santo herege! Vê se bota ele nos conformes senão amanhã ele vira é fogueira! Posso até ser excomungada da Igreja, mas ele vai pra fogueira comigo, pra deixar de ser tratante! Bem cedinho eu venho olhar pros pés dele: se ele não tiver ofício feito, dou cabo dele nesse povoado. E vai ser pau de fogo doutros santos: São João e São Pedro. Avise a ele, dizia Soledade já soltando fogo pelas ventas. - Tá certo, Soledade. Você tem toda razão, você é quem está no prejuízo e o santo há de lhe recompensar com um plus a mais nos seus pedidos! - Plus a mais? Que é isso? Tem cara e nome de remédio, quero não! Eu quero é um marido, isso sim! Quero é que esse santo duma figa cumpra o que me prometeu a vida toda, dizia Maria, a abufelada. Com muito jeito, doçura e algum mimo, o farmacêutico apaziguou os ânimos da moça. Pronto. Mais acalmada, lá se foi Soledade e a multidão atrás. Todos com pena do pobre do santo padroeiro. Tirante ela. Ela, que fizera novenas, rezara terços, cumprira penitências, se guardara para o milagre e o tal não acontecera. Ela, que sabia bem o que era estar sozinha no meio daquela cidade todinha. Ela, que já nem contava quantos aniversários de trinta anos comemorara... [No último, ano passado, um sobrinho revelou: "Êita, tia, essa já não é a terceira vez que você faz trinta não?"] Ela, que passara a humilhação de nunca ter feito barriga, a não ser de verme. Ela, que nunca dissera um palavrão na frente dos pais [só quando eles saíam]. Ela que jurara Castidade e Fidelidade aos ditos do padre e penava pra segurar a primeira por conta da segunda. Ela que fora enganada totalmente por um santo amarelo. Ela que tinha o nome de Solidão entalhado no seu. Ela que era só saudade até em outra língua. Ela que perdera a fé. Ela que perdera até a fé no santo. Noite escura, céu tristonho, tudo parecia mais um sonho: a lua não apareceu nem pra dar boa noite e Soledade guardou nessa noite toda a sua revolta. Não dormiu. Estava agitada. Mas sonhou. Sonhou com um marido como sempre sonhava. No sonho, que parecia real, havia um homem bom e uma voz boa de se ouvir. Um homem casado, mas um homem bom. E ele era bonito e achava ela bonita. E ele sorria e fazia ela sorrir. E ela estava gostando tanto desse sonho quando, de repente, a razão falou bem alto e ela assustou-se: - Vixi Marissantíssima! Valei-me São José do Egito! Isso chega a ser pecado, sonhar com homem que ainda guarda aliança! Credo em cruz três vezes, três ave-marias e um padre-nosso pra garantir! Agora, ela pensava em Zé de Jura! Ele que não era casado mas que era fidelíssimo à falecida. Ele que fizera a jura. Pensava nisso e deixava a raiva de lado pra ficar nessa agonia: - Valei-me Nossa Senhora! Valei-me meu calisbento! A noite passeava comprida que só conversa de lavadeira em riacho doce até que, enfim, amanheceu. E o povo acordou. O padeiro fez o pão. O fiteiro vendeu o fumo. A bodega vendeu cachaça-de-cabeça. A quitanda, manga-espada. A rua inteira se perguntava e, no pátio da Igreja tudo era silêncio. O povo de Solidão estava acordado esperando a solução do santo ou a mudança do padroeiro desta para melhor. Soledade, trajada de roxo, foi bater na porta de Zé de Jura: - Seu Zé, ô seu Zé! Abra essa porta, por um favor! E vá logo me dizendo se já tem ofício de milagre ou o santo deu pra trás de novo? Gritava Soledade a todo vapor. De
dentro da farmácia, que também era a morada de Zé
de Jura, ouvia-se uns "espere um tiquinho" bem baixinhos, mas
apressados. O povo esperando o veredito e Maria abufelada mandando o povo
se aquietar... Cinco minutos depois, aparece o boticário com um
andor improvisado nas caixas de remédios, com a cara moída
pelo sono mas com a boca contente e cheia dessa falação: - Calma, que eu vou contar... Foi essa noite, à meia-noite. Eu botei o santinho no altar e pedi para ele se aprumar senão seria o último dia dele nesse mundo. Rezei e rezei. Muito. Pedi para ele consolar Antonieta, a finada mulher minha, e para ela vir me ajudar a solucionar esse problema. Pois o milagre foi bem aí que aconteceu! Não é que a finada Antonieta me apareceu e disse "- José Liceu, José Liceu! Você vai deixar de se chamar Zé de Jura é hoje que esse nome é tão feio que nem eu agüento mais! Não tem jura nem promessa que você, com sofrimento, já não tenha cumprido, José! Já está mais do que cumprido o seu luto e eu aqui não guardo votos mais não - agora virei Anja e não quero mais saber de homem me encabulando com saudade!" Disse-me a falecida com voz de alma penada! E ainda completou: "- Enquanto vida você tiver, me prometa apenas uma coisa: não esqueça de cuidar dessa saudade...Não esqueça de cuidar dessa saudade..." E então, meu povo, lá foi ela desaparecendo, desaparecendo, até ficar bem azul e se confundir com a cor do céu! E pronto! Foi assim meu sonho. E foi assim o milagre! O povo se entreolhava sem saber o sentido do sonho - E cadê esse milagre, homem de Deus? Seu Zé de Jura, explique logo isso, criatura, oxente! Que danado de alma penada mais maluca é essa que não quer que o senhor chore por ela mas pede pra ter cuidado com a saudade? O povo não se conformava e, então, Zé de Jura se explicou: - Minha gente, meu povo querido de Solidão! O povo que aqui vive só precisa cuidar uns dos outros e cuidar da saudade e pronto! Só isso! Foi o que a finada Antonieta, afilhada de Santo Antônio, veio me dizer! Agora, vejam bem, só agora entendi tudo! "NÃO ESQUECER DE CUIDAR DA SAUDADE..." Vocês não vêem? Não entendem? Quem nessa cidade tem nome de Saudade? O povo ficava cada vez mais confuso...Ora, a moça que ameaçou acabar com o santo! Dona Soledade! O nome dela é "Saudade", só que em mexicano...Dizia Zé de Jura, todo orgulhoso da tradução literal de seu sonho! O povo ficou abismado como aquele homem, além de médico devia ser um santo também! E assim o aclamaram! "- Milagre! Milagre!!!" Ouvindo isso, Soledade deu uma biloura bem grande, daquelas que só donzelas juramentadas sabem dar muito bem. O povo gritava "Milagre, milagre! Santo Antônio juntou o Viúvo com a Vitalina e tudo na letra 'vê'! Milagre!Milagre!!!" E
foi assim que Santo Antônio escapou de morrer afogado, enforcado
ou mesmo atolado, no meio da Solidão... Assim se passou no município de Solidão, interior de Pernambuco. Dizem os devotos de lá que na frente da Matriz da cidade, até hoje, se enxerga o Santo Antônio ainda sorrindo. Mas amarelo, amarelo... |