â€Na
barranceira do rio o ingá se debruçou
e a fruta que era madura
a correnteza levou, a correnteza levou,
a correnteza levou...
Oh, dandá, oh, dandá...â€
- Djavan -
Muitos
anos já se passaram, dias e dias amontoaram-se de tal
forma que
fatos e imaginários tornaram-se todos da mesma cor...
Chamava-se Bacurau. Era assim que todos o chamavam. Em casa, na rua,
na
feira, mercado, na escola:
-
Bacurau, responda presente, trem! Bacurau, lerdo! Bacurau, cara de
piau... Bacurau, excomungado, corre aqui!!!
Bacurau
levantou cedo naquela manhã de domingo. Acordou com o
céu ainda
cinza escuro e a frieza da noite escanchada no cangote. Não
ligou, sabia
que mais tarde a quentura do dia ia escaldar a todo vivente que se
atrevesse a sair ao tempo e as horas frias da madrugada seriam cobiçadas
por todos. Passou por cima da mãe que roncava baixo, enrolada
num cobertor
roto, a boca de poucos dentes aberta escorrendo baba e indo regar o
chão de
terra batida... Chegou nos fundos do casebre, levantou a tampa do porrão,
encheu o caneco de flandres, fez um gargarejo e repetiu o gesto de encher
a
caneca. No fogão de pedra soprou um resto de brasa e salpicou
o fogo com
uns gravetos miúdos. Sentou no tamborete e, enquanto a
água não fervia,
esgaravatou as unhas do pé. Tomou o café ralo,
meteu a mão na espingarda de
socar, o facão indo parar na cintura e a capanga no ombro.
Abriu a porta e
assobiou para a cadela Pirata.
Andou
a manhã inteira. Subiu as pedras passando pela toca dos
mocós; â€dessa
veiz ocês num corri o risco de levá um tiroâ€,
falou mais para si próprio
que para os animais entocados no fundo do buraco. Desceu pelo outro
lado da
serra até alcançar a mata alta da caatinga.
O macaco-prego guinchou na
vereda rasgando o silêncio do mato e um outro e outro repetiram
o grito de
alarme. Bacurau levantou os olhos e olhou para aquele céu
claro de doer a
vista. Lá no alto, o fundo azul salpicado de pontinhos
pretos voando em
cÃrculo.
-
Fiquem aà isperando qui daqui a pouco cês vão
tê o qui comê; falou
sozinho mais uma vez.
A
mato retorcido foi rareando e seus pés grosseiros, fincados
na sandália
de couro cru, pisaram fundo no areão do rio quase de todo
seco. Alcançou o
filete de água meio barrenta e se agachou pra molhar os
lábios ásperos.
Depois ficou ali, acocorado, olhando para o leito estreito por onde
a água
escorria, enquanto sua mente voltava aos tempos de menino...
Naquela
época o rio ainda corria largo e logo abaixo formava um
ribeirão.
Fora ali, numas férias de final de ano, que ele ao acompanhar
os meninos da
capital, quase morre afogado. Não sabia nadar e ficava
na margem observando
a brincadeira dos outros. Sem conseguir lembrar quem havia dado a idéia,
encheu a mão de piabas vivas pescadas com o uso duma garrafa
de champanhe e
as levou à boca engolindo-as viva. Depois tomou distância
e mergulhou no
poço. Seu corpo submergiu e a escuridão tomou
conta do fundo do rio. O medo
envolveu sua mente. Torceu o corpo para voltar à superfÃcie
agitando os
braços desordenadamente. Sentiu que não subia,
mas afundava mais e mais. O
desespero abriu sua boca num grito mudo. A água então
invadiu seu pulmão
incendiando o peito e o obrigando a arregalar os olhos pro inferno.
Não
sentiu a mão forte do garimpeiro agarrando-o pelo pulso
nem mesmo os tapas
que levou nas costas. O que lembra é do corpo encolhido,
os joelhos
encostados na boca do estômago e a tosse seca fazendo
doer as costelas Ã
mostra. Mas o que mais recorda, e o que ainda lhe dói é
a lembrança da
arrelia dos meninos e o xingamento do seu salvador:
-
â€Bacurau, sua disgraça! Bacurau abestado...
Seu fio de cachorra sem
pai...
E
ele ali, chorando de dor e vergonha...
Bacurau
se levanta. Apóia o corpo na espingarda. Encosta o externo
no cano.
A mão direita segura um galho com uma forquilha na ponta,
a esquerda agarra
o trabuco como se tivesse receio deste sair do lugar. Bacurau, com um
gesto
brusco de cabeça, joga o chapéu de couro para
trás e levanta a vista
procurando os pontinhos pretos perdidos lá no céu.
O céu azul de doer a
vista, o silêncio da caatinga, o sumiço da
cachorra, o fio dâ€Ã¡gua a
escorrer sem fim...
A
forquilha vai de encontro ao gatilho da arma. O tiro estronda pela tarde
a fora arrancando penas da ribançã assustada.
Os olhos reviram na face
lÃvida de Bacurau e o gosto de gás engrossa
a lÃngua fora da boca. A vida
fugiu rápida pelo buraco no peito. O céu
foi ficando escurinho, escurinho e
o latido distante da cachorra parece vir de todos os lados. Bacurau
ouve
sua mãe acocorada na beira do lajedo. Uma das mãos
segura a faca
ensangüentada, a outra tenta conter o bater convulso
das asas da ave ferida
de morte:
-
Bacurau, miséra! Pega aqui a cuia cum o vinagre....
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