A PARTIDA DE BACURAU
Marco Britto
 
 

“Na barranceira do rio o ingá se debruçou
e a fruta que era madura
a correnteza levou, a correnteza levou,
a correnteza levou...
Oh, dandá, oh, dandá...”
- Djavan -

Muitos anos já se passaram, dias e dias amontoaram-se de tal forma que
fatos e imaginários tornaram-se todos da mesma cor...


Chamava-se Bacurau. Era assim que todos o chamavam. Em casa, na rua, na
feira, mercado, na escola:

- Bacurau, responda presente, trem! Bacurau, lerdo! Bacurau, cara de
piau... Bacurau, excomungado, corre aqui!!!

Bacurau levantou cedo naquela manhã de domingo. Acordou com o céu ainda
cinza escuro e a frieza da noite escanchada no cangote. Não ligou, sabia
que mais tarde a quentura do dia ia escaldar a todo vivente que se
atrevesse a sair ao tempo e as horas frias da madrugada seriam cobiçadas
por todos. Passou por cima da mãe que roncava baixo, enrolada num cobertor
roto, a boca de poucos dentes aberta escorrendo baba e indo regar o chão de
terra batida... Chegou nos fundos do casebre, levantou a tampa do porrão,
encheu o caneco de flandres, fez um gargarejo e repetiu o gesto de encher a
caneca. No fogão de pedra soprou um resto de brasa e salpicou o fogo com
uns gravetos miúdos. Sentou no tamborete e, enquanto a água não fervia,
esgaravatou as unhas do pé. Tomou o café ralo, meteu a mão na espingarda de
socar, o facão indo parar na cintura e a capanga no ombro. Abriu a porta e
assobiou para a cadela Pirata.

Andou a manhã inteira. Subiu as pedras passando pela toca dos mocós; “dessa
veiz ocês num corri o risco de levá um tiro”, falou mais para si próprio
que para os animais entocados no fundo do buraco. Desceu pelo outro lado da
serra até alcançar a mata alta da caatinga. O macaco-prego guinchou na
vereda rasgando o silêncio do mato e um outro e outro repetiram o grito de
alarme. Bacurau levantou os olhos e olhou para aquele céu claro de doer a
vista. Lá no alto, o fundo azul salpicado de pontinhos pretos voando em
círculo.

- Fiquem aí isperando qui daqui a pouco cês vão tê o qui comê; falou
sozinho mais uma vez.

A mato retorcido foi rareando e seus pés grosseiros, fincados na sandália
de couro cru, pisaram fundo no areão do rio quase de todo seco. Alcançou o
filete de água meio barrenta e se agachou pra molhar os lábios ásperos.
Depois ficou ali, acocorado, olhando para o leito estreito por onde a água
escorria, enquanto sua mente voltava aos tempos de menino...

Naquela época o rio ainda corria largo e logo abaixo formava um ribeirão.
Fora ali, numas férias de final de ano, que ele ao acompanhar os meninos da
capital, quase morre afogado. Não sabia nadar e ficava na margem observando
a brincadeira dos outros. Sem conseguir lembrar quem havia dado a idéia,
encheu a mão de piabas vivas pescadas com o uso duma garrafa de champanhe e
as levou à boca engolindo-as viva. Depois tomou distância e mergulhou no
poço. Seu corpo submergiu e a escuridão tomou conta do fundo do rio. O medo
envolveu sua mente. Torceu o corpo para voltar à superfície agitando os
braços desordenadamente. Sentiu que não subia, mas afundava mais e mais. O
desespero abriu sua boca num grito mudo. A água então invadiu seu pulmão
incendiando o peito e o obrigando a arregalar os olhos pro inferno. Não
sentiu a mão forte do garimpeiro agarrando-o pelo pulso nem mesmo os tapas
que levou nas costas. O que lembra é do corpo encolhido, os joelhos
encostados na boca do estômago e a tosse seca fazendo doer as costelas Ã
mostra. Mas o que mais recorda, e o que ainda lhe dói é a lembrança da
arrelia dos meninos e o xingamento do seu salvador:

- “Bacurau, sua disgraça! Bacurau abestado... Seu fio de cachorra sem
pai...

E ele ali, chorando de dor e vergonha...

Bacurau se levanta. Apóia o corpo na espingarda. Encosta o externo no cano.
A mão direita segura um galho com uma forquilha na ponta, a esquerda agarra
o trabuco como se tivesse receio deste sair do lugar. Bacurau, com um gesto
brusco de cabeça, joga o chapéu de couro para trás e levanta a vista
procurando os pontinhos pretos perdidos lá no céu. O céu azul de doer a
vista, o silêncio da caatinga, o sumiço da cachorra, o fio d’água a
escorrer sem fim...

A forquilha vai de encontro ao gatilho da arma. O tiro estronda pela tarde
a fora arrancando penas da ribançã assustada. Os olhos reviram na face
lívida de Bacurau e o gosto de gás engrossa a língua fora da boca. A vida
fugiu rápida pelo buraco no peito. O céu foi ficando escurinho, escurinho e
o latido distante da cachorra parece vir de todos os lados. Bacurau ouve
sua mãe acocorada na beira do lajedo. Uma das mãos segura a faca
ensangüentada, a outra tenta conter o bater convulso das asas da ave ferida
de morte:

- Bacurau, miséra! Pega aqui a cuia cum o vinagre....