DECÁLOGO
MARAVILHOSO DE SHACKLEE
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Edison
Veiga Junior
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1. Amar a Deus sobre todas as coisas. Sempre que as luzes eram apagadas, Shacklee via as lampadinhas de natal pisca-piscando num exercício jingle bell. E assoviava baixinho a melodia que sabia de cor desde criança. Para a irritação dos seus 37 colegas de quarto, que chiavam e começavam logo a pancadaria. Até que Shacklee tinha os miolos estourados, o sangue escorria por todo o quarto e os 37 colegas de quarto dormiam sorrindo, sonhando com a reconstrução de Shacklee no dia seguinte. Os nomes deles eram Santylli, Sarley, Sarlindson, Sattle, Saturnyn, Schuwawn, Seattlou, Sedaciou, Seen, Seenyour, Seenil, Seh, Seil, Sejarcovski, Semne, Sennix, Seoul, Seppya, Seqtawa, Serr, Sestafeyra, Seysse, Sezh, Shock, Shoun-tackle, Shytakee, Singarro, Singapuri, Souter, Sowterr, Suast, Suatjeklovz, Suaw, Sued, Syn, Swonnid e Tartaruga os quartos organizavam-se por ordem alfabética, e eles ocupavam o de número 211C. Shacklee olhava para os seu 37 colegas de quarto dormindo com o sorriso aberto, com um ronco tão alto de quebrar as vidraças, olhava para o quarto escuro e via as lampadinhas de natal pisca-piscando num exercício jingle bell, mas se continha para não assoviar de novo, olhava para o chão onde estava seu cérebro em pedaços. Olhava para cima, encontrava deus-pai-todo-poderoso, perdoava seus 37 colegas de quarto, amava seus 37 colegas de quarto, e orava e louvava. Dia seguinte teria outros miolos para serem estourados. *** Enquanto trabalhava cavando buracos para serem tapados pelo próximo da fila para serem cavados pelo próximo da fila para serem tapados pelo próximo da fila para serem cavados pelo próximo da fila para serem tapados pelo próximo da fila para serem cavados pelo próximo da fila para serem tapados pelo próximo da fila..., ficava medindo a distância que o separava dos demais colegas, todos organizados em ordem alfabética, tendo como critério de desempate, numa pouco provável hipótese de que dois ou mais dividissem o mesmo nome, o tipo sangüíneo, depois o número de dentes na boca e, por último, a quantidade de títulos de seu time de futebol. Se a distância fosse maior ou igual a 97 centímetros e meio, ele nem considerava o sujeito um ser de sua própria espécie. Entre 29 e 97 centímetros e meio, ora, era um conhecido. Próximos mesmo, só aqueles que suportassem, sol a pino, ficar em um raio menor ou igual a 29 centímetros dele. 2. Não tomar o nome de Deus em vão. Shacklee usava duas gravatas ao mesmo tempo. Uma para sentir o nó e outra para se enforcar de vez. Sabia que era só no dia seguinte afrouxar para ser refeito novamente. Fácil como empilhar pedras e pilhar perdas. Quando Shacklee tinha sede, gritava Água. E chovia. Em todas, funcionava. Por isso que, quando ele teve fome, gritou Água também. Mas não houve caldo de feijão, nem arroz empelotado, nem bife gordo desabando do céu. De sorte que Shacklee compreendeu que não deveria gritar Água para tudo. 3. Guardar para a religião domingos e dias de festa. No último dia de cada semana, que para Shacklee era ora o décimo-segundo, ora o vigésimo-quinto, descansava-se. Shacklee aproveitava a folga para tirar as duas gravatas de todos os dias e vestir um kit logo com uma dúzia delas. Ficava tão emperequitado que nenhum dos seus conhecidos assumia o conhecimento, e mesmo os seus próximos fingiam ignorá-lo. Ainda bem que era um dia nulo, em que não se tapava nem se cavava. Shacklee costumava passá-lo deitado no sofá, no máximo com uma revista pornô debaixo dos olhos. E dormia, e chorava, e desmontava-se para ver o que tinha dentro de seu corpo. E fugia toda vez que via alguns de seus 37 colegas de quarto, pois sabia que ou eles queriam quebrá-lo outra vez ou, ao menos, lhe tomariam a revista que fazia alegres seus poucos momentos ociosos. *** Os buracos na folhinha tornavam-se lacunas nervosíssimas na cabeça de Shacklee. Sentia-se como se não fosse, não houvesse. Era nada mais que uma vida debaixo do tapete, varrida. Ou uma vassoura, varredora, atrás da porta. Sem trinco, sem nada. E ouvia os 37 colegas de quarto com risinhos desgraçados. Vontade de devorá-los um a um, arrancando-lhes a cabeça e sorvendo, pelo pescoço, cada gota de sangue deles. Todos os assassinatos que Shacklee tramava eram anotados em um papel, meticulosamente. O papel, amarelo e levemente amassado, ficava guardado sempre entre as páginas 32 e 33 da revista pornô. 4. Honrar pai e mãe. Às vezes Shacklee sonhava com o dia de seu nascimento. Na ocasião, cada relógio marcava um horário: 0h45, 24:45, 0:45, 12:45PM... E, dentro da chocadeira, a maioria dos ovos gorou. Shacklee foi o primeiro a saltar fora do ovo, após quebrar direitinho toda a casca, conforme havia aprendido no curso de nascimento ministrado pelo professor japonês Yamura Kawassakaki. Assim, quando os dois únicos filhotinhos outros saíram de suas cascas, Shacklee já estava forte o suficiente para trucidá-los com o bico. Bico este, aliás, que foi extinto quando as aves, antes répteis, viraram humanos. Ou alguma coisa parecida porque da evolução os registros são poucos, precários e confusos. 5. Não matar. (Pula) 6. Não pecar contra a castidade. Virou lenda o dia em que Shacklee saiu caçando todas, todas as mulheres do campo de concentração. Eram 3 997, àquela altura hoje não restam 19. Trancou-as em um quarto com pouco mais de 27 metros quadrados, amontoadas uma sobre as outras, aglutinadas. Despiu-as com uma serra elétrica e, sem preservativo nem nada, tratou de penetrá-las raivosamente, em fila. O processo todo levou mais de 14 horas e entrou para o famigerado livro dos recordes do local. Além, é claro, de provocar a inveja e a ira de seus 37 colegas de quarto, que decidiram linchá-lo por mau comportamento perante as damas da sociedade campo-de-concentraçãozense. *** Shacklee foi encontrado, no dia seguinte, com as pernas de uma cadeira dentro de sua cabeça. Seu tênis marronzinho, a 200 metros de seu corpo. Uma grelha de carne foi utilizada para queimar suas partes pudentes. E nada, mas nada teve a declarar quando, redivivo, percebeu que gostaria de repetir tudo de novo. 7. Não furtar. No campo de concentração ninguém podia esquecer a bola, a carteira ou a sogra sobre o banco da pracinha. Shacklee ia lá e tomava, com a sua gigante boca. Ninguém podia deixar resto no prato. Shacklee devorava, com prato e tudo adorava os pratos, sobretudo. Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão. Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede. Um dia Shacklee roubou, para si e sua coleção de objetos estranhos roubados, a parede e o chão. De quebra levou a pessoa que ia entrar nela e a rede dependurada. Quando foram reclamar ao delegado de polícia, este contra-argumentou que nada havia visto e, portanto, nada houve. Nem a declarar. 8. Não levantar falso testemunho. Quando era criança, Shacklee gostava de brincar de bate-cara. Ou pique-esconde, de acordo com o regionalismo que mais convier, ser, fingir. Às vezes, piquenique. Sua mania era acabar de contar e gritar bem alto os podres dos amiguinhos, atualmente seus 37 colegas de quarto. Por isso apanhava, sempre. Por isso não tinha medo de escuro e preferia inventar lampadinhas de natal. Para disfarças as estrelinhas. Nas entrelinhas. 9. Não desejar a mulher do próximo. As 19 mulheres restantes no campo de concentração tinham dono. No calcanhar esquerdo de cada uma delas, um código de barras que, quando passado na maquininha de supermercado, acusam o seu proprietário além de idade, telefone para recados, cor da pele e posição favorita para o coito. Shacklee, que já possuiu todas elas e outras 3 978, havia ficado sem nenhuma. 10. Não cobiçar as coisas alheias. Inventou-se um inventário minucioso pleonástico dos itens do campo de concentração: 2
487 meias de percal azuis Num arroubo certeiro, Shacklee matou os outros personagens e ficou com todos os pertences. |