AMOSTRA GRÁTIS, PARTE 2
Edison Veiga Junior
 
 

Acordou ansiosa para abrir as janelas e procurar pelos sonhos que haviam fugido de sua cabeça durante a noite. Por que será que os pesadelos ficavam vivos na memória enquanto os alegres sonhos de idílios impossíveis e grandes vitórias se perdiam para sempre na moleza do inconsciente? Seriam os sonhos coelhos fugindo rápido pelo emaranhado de campos silvestres que as pessoas têm dentro de suas cabeças? Ou seriam tarefas cumpridas? Então os pesadelos devem ter mesmo esse nome ridículo por causa do peso enorme: são os coelhos gordos, ou grandes ursos que o cérebro sonha por confundi-los com coelhos. Na hora do sol nascente, hora combinada para a fuga, coelhos somem embrenhando-se no mato enquanto os obesos ursos diabéticos não conseguem se perder.

Ela estava encucada com o dilema crucial de sua vida. Queria tanto se lembrar dos prazeres que tinha gozado enquanto sucumbia em profundo sono. Queria tanto se lembrar que tinha sido poema, nua em verso, feito patética idealização romântica em sua cama quentinha. Quentinha como ela ficava só de pensar no que havia sonhado e não se lembrava mais. Quentinha e com o coração palpitante, toda lábios intumescidos de um frenesi contagiante que irradiava seus olhos de moça. Tentava até simpatias para avivar sua memória e recordar-se dos sonhos, mas como não possuía superstição suficiente em seu âmago, nada adiantava, sequer funcionaria.

Abriu as janelas enfim e, para seu descontento, não topou com um belo sol pronto para condecorar aquela noite maravilhosa. Era chuva chovendo devagar, sem pressa para acabar, como um pássaro doente que se arrasta agonizante esperando a morte chegar e torcendo para que acabe logo sua sina desperdiçada de viver. Mal sabia ela que toda chuva matinal era resultado da tempestade noturna que agonizava as pessoas e a perseguia impiedosamente. Fosse o que fosse, apenas imaginação, e na verdade o que havia era sim, chuva chovendo, só que os pingos, se vistos sem desconfiança, reduziríam-se a meros orvalhos do alvorecer. Blém-blém-blém? De dia o barulho social, a turbulência dos carros e ônibus e aviões e transeuntes conversando, atrapalhava a audição e não tinha blém-blém-blém. Na verdade tinha, e ela sabia que tinha, mas fingia que não tinha para não ficar preocupada por não ouvir o blém-blém-blém. Por isso ela preferia mil vezes a noite com seus raios de luar e suas lampadazinhas estrelas ao dia, quando as coisas acontecem e é tão chato acontecerem as coisas.

E a chuva chovendo devagar a lembrava de idéias de suicídio. Poderia ela pular ali da janela, nono andar, e virar pacote de defunto quando se esbodegar no chão rude do asfalto? Outro dia leu que as pessoas se matam mais em dias de chuva, que a chuva entristece, que a chuva é um motivo a mais para a morte, que a chuva é mesmo a gota d’água dos problemas, e não inúmeras gotas d’água força vital que move a humanidade. Isso porque as pessoas ainda não haviam descoberto que a chuva só as mataria se se tornasse um fenômeno capaz de matá-las, e sendo que só se tornaria capaz se as próprias pessoas permitissem. Nove andares de ruptura e um abismo entre vida e morte, a maior antítese que refuta os pensamentos da gente. Acho que a chuva ajuda a gente a se ver, é o som que vem do rádio ligado no canto do quarto que cheira aquele aroma gostoso da alma feminina que acaba de despertar.

Ela achava mesmo que era melhor encarar a chuva como um artefato mágico que ajudava as pessoas a se verem melhor. Acabava de descobrir que via a chuva como o que revelaria o nosso próprio sentimento. A chuva quando forma poça é espelho natural para quem não penteia o cabelo. A chuva quando falta é caos total na terra que dependemos da água. A chuva quando tem sol junto ou imediatamente após resulta em arco-íris, um dos mais belos espetáculos que encantam os olhos de quem vê, além de servir de esconderijo para os gnomos de todos os tipos e tamanhos, em cada ponta do arco, com uma arca cheia de tesouros desconhecidos da humanidade.

Quais eram os tesouros que compunham a fortuna dos gnomos? Ela tinha certeza, mas não ia contar para ninguém, que eram os sentimentos mais bonitos. E pensava naquela pieguice pueril como seria legal quando os homens resgatassem moedas de Amor, notas de Paz, pérolas de Amizade, pulseiras de Sinceridade, colares magníficos de União, alianças douradas que não simbolizariam a prisão, mas a liberdade...

Só que se a chuva não fosse nada disso, se resumisse àquela idéia física de que o ciclo da água é algo natural e normal, sem nenhuma possibilidade dos desvarios seus serem realidade, então é que ela teria descoberto mesmo o motivo para se jogar dali do nono andar e virar espírito solto quando cair no meio da rua, atrapalhando o trânsito. Onde estariam então os gnomos? E os sentimentos do mundo? Não! Seria deveras triste para ser verdade: imagine que pacato o mundo intrínseco em reações químicas que tentam em vão explicar a evaporação da água e os fenômenos da chuva que chove. Chove e pronto.