LÁ MENOR. DÓ MAIOR
Lia A. Falcão
 
 

Devia ter no máximo cinco a seis anos o pequeno vulto que vi, descalço, no meio do asfalto abrasado, tentando atrair a atenção dos motoristas e transeuntes para suas estripulias mal ensaiadas com dois bastões cujas estremidades ostentavam pequenas labaredas. Nos parcos segundos de semáforo vermelho, realiza a proeza de não mendigar mendigando: afinal, é um artista e quer a oportunidade de livrar-se da exclusão precoce e sem razão.

Estica as pernas e passa os bastões entre elas, joga-os para o alto repassando-os em volta do pescoço, e pula e dança, qual mico de circo sem domador e sem platéia. Absolutamente ninguém presta-lhe atenção.

Espantoso como às sete e quarenta e cinco da manhã as pessoas já estão totalmente alheias a tudo da vida que, intrometida, as cerca. Conversam ao celular, fumam compulsivamente, olham para o nada, miram a moça que passa apressada, buzinam na intenção de apressar o verde do sinal. Cada um hermeticamente fechado em seus carrões e pensamentos.

Mas a criança mirrada e suja, insiste em mostrar-se como é e, com suas roupas totalmente esfarrapadas, põe em risco aquele pulsar de vida por pouco de atenção.

Arrisco-me a procurar algo na bolsa e aproveitar os últimos segunso do sinal fechado para deixar-lhe uns trocadinhos que sirvam para mitigar um pouco de sua fome daquele dia.

De repente, ele grita e sai correndo desesperado, ardendo em chamas na roupa e nos cabelos. Esquiva-se dos ônibus, dos carros das motocicletas impacientes com a demora do sinal.

As pessoas permaneceram estáticas e indiferentes aos gritos. Ninguém repara quando ele senta na calçada do lado oposto a via e pede socorro aos gritos. Ninguém ajuda. Meio desesperada e indignada, começo a buzinar e gesticular para os motoristas que estão bem próximos à calçada. Um, teve a audácia de fechar o vidro da janela para não ser incomodado. Realidade incomoda.

Não consigo fazer nada. Não posso sair, nem ele é socorrido. De repente, vejo que ele mesmo, com o próprio bastão e as pequenas mãos, apaga as brasinhas restantes de seu cabelo e do calção.

Decido atrapalhar aquele trânsito e ligo o pisca-alerta. Vou parar pra ver o que posso fazer, podem buzinar à vontade. Tento chamá-lo e ele com olhos treinados e rápidos, logo me detecta na balbúrdia daquele tráfego. Corre em direção ao carro onde estou:

- Você se machucou, amiguinho? Queimou muito? Como está isso? Deixa ver...Tem que fazer curativo nisso. Vamos à farmácia?
Pergunto, na esperança de ele concordar comigo e irmos em busca de remédios. Mas não foi bem isso que ouvi daquele pequeno excluído.

Não quis entrar no carro e da janela mesmo, ele me respondeu com a crueza de um predestinado:

- Quem dera, dona. Dinheiro eu quero, remédio não. Isso não dói nada... Dói é minha barriga seca, de fome. Ali na esquina tem uma padaria onde uns rapazes estão me esperando. Eu levo o dinheiro pra eles e ganho minha parte, porque rico só dá dinheiro grande pra gente pequena! Vá-se embora, dona, que o sinal já abriu...

Atônita, entreguei-lhe o dinheiro, fechei o vidro da janela e segui com minha angústia para o trabalho. O coração chorava por aquele infeliz. Dó maior não houve desde então.

A réstia de humanidade e a sombra dos homens de boa vontade não é mais suficiente para me consolar desse fato aterrador.

Do inferno dos excluídos, sobreviventes desse genocídio social, vem sendo parida e cevada a exuberante geração de netos do Caos!