CACOS
DE VIDRO
|
Carla
Deboni
|
A claridade entra pelas frestas do teto do quarto para espiar se ela ainda dorme. Tal como a janela, tem as pálpebras ainda cerradas, pesadas como a cortina que lhe roça a orelha. As chinelas parecem tão longe, que o ritual de se levar e colocar os pés na boca do dia aumenta ainda mais a vontade de continuar na preguiçosa carícia do travesseiro. É quando se lembra da noite anterior, em alguns flashes. Copos. Vinho. Vômito. Tontura. Queda. Braços. Beijo. Cama. Cobertor. Quatro pés. E agora, afundada na brancura do lençol que lhe serve de camisola, recusa-se a levantar. Maldita hora em que resolveu aceitar aquele convite. Não conhecia ninguém na festa, por que ir? Amigos que se reuniam em grupos intransponíveis, vestidos longos que afastavam-na ainda mais, penteados que em nada combinavam com seu recém-lavado cabelo, improvisado num rabo de cavalo tão bem estruturado quanto a Torre de Piza. Vontade de correr. Desespero. É quando ele surge. Primeiro, derrubando bebida em seu All Star novo. Pedidos de desculpas intermináveis, um jeito meio bobo e doce no sorrir. Apesar de já conhecê-lo havia muitos anos, jamais o tinha visto de terno. De repente, ela começou a olhá-lo de forma diferente. Ele percebeu, e ela pôde notar em seu jeito que há muito ele aguardava essa atenção especial. Platonismo latente em cada gesto, em cada palavra que a boca tremia ao pronunciar. E ela sentiu-se rainha. Estranha a sensação de ser amada, o sentimento alheio de contemplação de certa forma engrandece, a vaidade transforma e a idéia de superioridade de repente invade o olhar. Saber-se necessária para as fantasias que se tornam sofrimento na mente apaixonada, alvo de um carinho regado a cada dia com suspiros e sussurros apressados. Para chamar ainda mais a atenção, resolveu começar a beber. Depois, os flashes. É tudo do que se recorda. Só percebe que agora, nua, está longe não apenas das chinelas, mas de sua roupa também. Os pés, agora só dois, ganham o chão para vencer a distância até a porta. Vontade de correr de repente. A roupa, meu Deus, cadê a roupa. Aos tropeços, procura os tecidos que podem lhe cobrir o corpo. Ainda assim, não os encontra. O que fizera deles? E agora, qual fantasia vestir? Desmaio. Mal sabia ela que depois de alguns meses a barriga cresceria. Engraçado como o livre-arbítrio nos prega algumas peças. Uma noite boba, de All Star molhado, mudaria toda sua vida. Gêmeos. |