AVE DE ARRIBAÇÃO
|
Lia A. Falcão
|
Sou matuta do interior pernambucano, graças à audácia de um co-piloto cearense, amigo de meu pai e de seus conhecimentos bio-cartográficos. Numa das viagens emergenciais para controlar a fúria da seca na caatinga, meu pai resolveu levar um outro projeto: um projeto de vida e de gente com oito meses de barriga e tendências nada razoáveis de permanecer por lá o tempo de praxe. Vistoriava as barragens e açudes de dia e fazia toda a visitação dos acampamentos comandando a equipe do DNOCS vinda do sertão do Cariri, no Ceará, para o agreste pernambucano, numa excursão rápida para ganharem tempo de brincar o carnaval: era sexta-feira gorda. E assim se deu. O dia inteiro subindo e descendo os ares tórridos das terras nordestinadas naquele ano de seca. Meu pai, humanista declarado e juramentado em cartório, arranjava tempo para conversar e filosofar com os caboclos da região, ouvir suas mazelas e rezar suas preces. De um, ouviu o seguinte: - Esse bucho de sua mulé num adura noite inteirinha não! Deixe ver se vinga em terra, no ar é difícil vingar menino. Meu pai deixou cair a ponta do cigarro e olhou bem para a barriga que me abrigava. Tinha esperança de que fosse uma menina, depois de dois meninos machos que já tivera. Passou a mão em 'mim' e disse: - Vigie essa menina, mulher, senão ela me nasce é a bordo, que já piruetou demais por hoje! Se eu ouvi a profecia ou não, a lenda não diz. O que sei me foi contado pelos meus avós e pelos padrinhos e madrinhas de bordo. Meu pai, tranqüilo e bonachão, veio a falecer três anos e meio depois desse episódio, vencido por um câncer aos 36 anos. Pois bem. Deu-se que, nessa sexta-feira, às cinco da tarde, o monomotor em pleno vôo, encontrou-se com uma revoada de avoantes e outras aves de arribação, comuns no sertão daqui. Pane geral. Muitos solavancos e perigo de pouso em local incerto. As aves cruzaram o caminho do teco-teco e no burburinho, nem notaram que eu nascera! Depois do susto, a calmaria foi entrecortada pela voz da comissária nordestina: - Tem nenenzinho a bordo! Tem nenenzinho a bordo! E gerou-se uma nova confusão... À tripulação, tranquilizava novamente o co-piloto, que ajudara meu pai a me trazer ao mundo! A cena era a seguinte: meu pai chorava de um lado, a aeromoça obstetra-por-um-dia se desmanchava em lágrimas do outro, e eu, no meio dos dois, nem choro, nem vela: sorria e escancarava os olhos pra tudo! Quem sabe por causa dos tímpanos estourados devido à altitude, ao invés de chorar, fiquei quietinha, desconfiada, de olhos grudados no mel dos olhos de meu pai que acabei herdando, para minha alegria e consumo! Dizem que parecia um presépio em pleno ar: ganhei de presente muitas nuvens brancas, uma revoada de passarinhos e uma nuance de azul cobalto que só eu sei que existe no céu! Talvez isso explique também minha fascinação por tudo que é mais leve que o ar, por tudo que me arrebata os pés do chão! E assim foi que, dentro dos áridos campos e das ocres caatingas, a VIDA veio dizer que também se vinga da morte e que vale a pena vivê-la sem medos e sem desmantêlos. Apesar dos solavancos, das secas e dos perigos das altitudes. Haverá sempre a esperança de numa sexta-feira qualquer, entre balacobacos e solavancos, a vida tornar-se foLIA mais uma vez... |