O FEITIÇO DO SAGRADO
Carla Deboni
 
 

As luzes do corredor assemelham-se à despretensiosa saliência do altar que tenho logo ali, em meio ao mural de fotos antigas. E eu, que acreditei na imortalidade do registro da memória, agora me vejo diante do esquecimento. Precisei chegar até aqui para contemplar esses pedaços de mim que caminham por aí, retratos que são perdidos em minhas crenças de amizade eterna.

E é numa foto 3x4 que encontro aquela lembrança. Um banco aparentemente qualquer, uma escola hoje vazia, uma amoreira que talvez nem exista mais. E você ao meu lado. Engraçado como o primeiro amor tem isso de belo: a primeira ilusão de entrega parece se concretizar no simples e retraído toque das mãos. A iniciação do coração ainda virgem entrega-se ao pioneirismo que a vida adulta já começa a impor nos primeiros anos da adolescência.

O nó na garganta, misturado à teimosa lágrima que insiste em umedecer o olhar saudoso, chega até os dedos, que não conseguem evitar o toque na fotografia. E que a arrancam num súbito impulso, como um suspiro inesperado que não esconde a vontade de voltar no tempo para não mais idolatrar esse momento. Agora tão distante.

Sabendo das limitações do corpo e da imaginação, devolvo a foto a seu lugar. Assim como tudo em minha vida, ela também tem lugar certo, e tirá-la de lá seria condená-la ao paganismo. Não, prefiro mantê-la intacta. Só assim mantenho vivo o feitiço do sagrado dentro de mim.

 
 
fale com a autora