MALANDRAGEM
Ronaldo Torres
 

Dizia a minha mãe que "se conselho fosse bom, não se dava; vendia-se". Mas conselho de mãe, antes de se enquadrar no dito-pop, tem um peso muito grande em nossa vida, mais parecendo um vaticínio do tipo "quem não ouve cuidado, ouve coitado". É assim que funciona a vida de quem tem mãe.

- Negão, deixe o celular em casa - pedi. Pedi não: implorei.

- E como meus amigos vão falar comigo?

- Não falam. Vão saber que você está na gandaia.

- Que nada! Você é muito medroso. Fui criado na malandragem dos morros do Rio de Janeiro e malandro conhece malandro.

- Tá certo então.

Saímos. Era meio-dia de domingo de carnaval. Destino: Campo Grande, abertura oficial do desfile de blocos de trio, onde as principais estrelas do carnaval baiano se esbaldam em brilho e também em embromação. Sob o reflexo opaco das lentes televisivas, elas contagiam em energia e animação. Mais adiante, onde apenas retinas humanas as vêem, a história é outra: mudam-se os personagens, saem as estrelas, entram cantores coadjuvantes, gente que passaria anônima se não fosse a (in) oportuna canja. Paga-se verdadeira fortuna por abadás para se desfilar em blocos dos deuses do carnaval e de repente está um-não-sei-quem com o microfone na mão.

A banda Chiclete com Banana enrola muito no seu lê-lê-lê entre uma música e outra, porém a rainha da embromação chama-se Ivete Sangalo. Não canta lê-lê-lê, nem laiá-laiá, contudo é de um conversê irritante. Domingo, nos cinqüenta minutos que o bloco tem pra se apresentar na passarela do Campo Grande, quarenta minutos foi só de conversa mole. Cantou apenas três músicas e, mal o trio se distanciou das câmeras, passou o microfone para um back-vocal e foi descansar. E o desfile mal começava.

Era apenas o início, cedo da tarde, e havia uma multidão inexplicável se espremendo para ver o bloco passar ao longo da Avenida. Não dava pra continuar ali. O sol queimava, o calor rachava e a gente mal podia se mexer.

- Vamos pra Castro Alves. Lá está desafogado. Depois a gente encerra o dia no Pelô - sugeri.

Atravessamos o Largo e tomamos o caminho do Casa d'Itália, confluência da Avenida Sete com a Rua Carlos Gomes. Os blocos e trios, quando saem do Campo Grande, seguem pela rua Forte de São Pedro e depois, no Jardim Baiano, derivam pela Avenida Sete de Setembro em direção da Praça Castro Alves, retornando pela Rua Carlos Gomes, desembocando exatamente no lado oposto do Jardim Baiano, onde acontece a dispersão. Nessa esquina, cujas avenidas principais do Centro se encontram, há um restaurante denominado "Casa d'Itália" e o local ficou conhecido por esse nome, em detrimento do verdadeiro, "Jardim Baiano". Localizam-se vizinhos ao restaurante o Palácio da Aclamação e o Teatro Vila Velha, mas o povo gosta das coisas simples e visíveis e de longe enxerga-se a placa luminosa da referida casa comercial.

Andamos normalmente, sem atropelos ou empurra-empurra até uns vinte metros da entrada da Rua Carlos Gomes. O bloco "Os Corujas", puxado por Ivete Sangalo, acabava de passar, arrastando uma multidão de folião-pipoca em seu vácuo, deixando uma clareira onde antes era multidão. De repente o vazio foi se enchendo de gente e uma barreira humana bloqueou a nossa passagem. O bloco Camaleão com a banda Chiclete com Banana se aproximava. Gritei assustado: "Recuemos, senão seremos esmagados!"

Conseguimos sair ilesos do meio da turba agitada. A banda Chiclete com Banana é uma das mais animadas e por isso deixa um rastro de violência por onde passa. É a que mais atrai foliões e, também, mais ladrões. Olhei para o meu amigo, malandro velho dos morros cariocas, e notei que ele estava contrariado.

- O que foi, negão, cê tá amarelo?

- Meu celular. Roubaram meu celular.

- Uê! você não disse que malandro não mexe com malandro?

- Acho que perdi minha identidade de malandro quando fui morar em Copacabana.

- Se você tivesse atendido o meu pedido, nada disso teria acontecido. Agora seus amigos não vão lhe achar, você está sem celular, e o meu domingo de carnaval acabou aqui, pois vamos passar o resto do dia tentando bloquear sua linha. Como dizia a minha mãe, repetindo o velho ditado: quem não ouve cuidado, ouve coitado.

Coitado de mim, isso sim, que saí de tão longe pra encontrar um amigo malandro que dorme de touca num domingo de carnaval. Mas vamos em frente que atrás vem gente atropelando quem fica parado chorando sobre o leite derramado, atrapalhando o trânsito. Amanhã tem mais. Xuxa vai cantar na Avenida em cima do trio de Ivete Sangalo mandando beijinhos para os marmanjos. O Chiclete vem atrás trazendo a mesma galera agitada e os mesmos ladrões de celulares e batedores de carteira e certamente outros malandros perderão seus celulares. E, no meio dessa marginália eletrizada, uma coisa consola a minha contrariedade de festa interrompida, de gozo pela metade: a Ivete Sangalo é muito gostosa.

 
 

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