DESLUTO
Lia A. Falcão
 
 

Depois que enviuvaram, não se largaram mais. Faziam tudo juntas: compras apressadas, contas equivocadas e confissões muitas vezes inventadas. Quando o assunto resvalava para os finados, a noite era miúda e as bocas não tinham descanso: pouco era o café para tantos prantos.

Aos domingos, igreja. Sábados e quartas, feiras. Sextas, faxina. Quintas, novena. Segundas e terças, doces e compotas. Rotina segura e sem falhas. Raros sábados iam à pracinha dar umas voltas para espairecer. Viviam assim há anos: mesma casa, mesmos assuntos, mesmas dores, mesmas pessoas.

Numa quarta-feira gorda, porém, o céu nublou de repente. As duas estavam na fila do supermercado e avistaram o primo de uma delas. Famintas por novidades, a abordagem foi imediata:
- Esquecido da vida, Sinôco? Que fazes por aqui hoje? O outro nem teve tempo de balbuciar uma desculpa e foi assolado por uma rajada de frivolidades familiares totalmente dispensáveis à ocasião. - E então, Sinôco? Vai nos dizer prá onde está indo assim, sozinho, no meio da semana? Provocavam. Ele, ensimesmado e cabisbaixo, transferia o olhar do chão para os lados, tentando esconder os punhos do paletó antigo e falho.
Por fim, desistiram e ele, tocando na aba do chapéu de feltro puído, fez um gesto de despedida desvanecendo-se delas pelos corredores e balcões da loja.

- Nossa! Que mal-educado! Nem se despediu de nós! Reparou que estava com a roupa velha? Hor-ro-ro-sa! Viu os punhos do paletó? Pu-í-dos! Do modo que se trajava, parece até que anda em petição de miséria. Melhor mesmo que tenha ido - assim não nos incomoda! Reparou que ele anda mal cheiroso? Cruz, credo! E iam as duas, perdidas no supermercado, tergiversando.

Dias mais tarde, num domingo ensolarado e teimoso para as coincidências, encontraram-se com a esposa de Sinôco na saída da igreja. Há tempos não se viam e, como era de feitio, puxaram logo aquela conversa cheia de interjeições:
- Antonina, criatura, como vais? Estás bem! Que fazes nessa missa? Novena nova? A abordada, mal fizera o sinal da cruz em menção de ir embora, já tinha de responder à santa inquisição.

- Antonina, minha filha, que coisa engraçada, olhe só! Sabias que dia desses encontramos teu marido, o Sinôco, sozinho fazendo hora no supermercado? Esquisito, não?! Ele agora anda com umas roupas tão estranhas! Diferentes daquelas que costumava usar antes! Quase não o reconhecemos e ele, mal falou conosco! Sufocavam-se em replicâncias sem notar na empalidecência da outra.

- Antonina? Estás passando bem? A outra mal se mantinha de pé...Queres um pouco d'água? Mas o que foi que disseste a ela, criatura? Quem sabe eles estão em crise conjugal? Não era pra dizeres certas coisas! Cochichavam as duas enquanto a outra só balbuciava não pode ser, não pode ser. Por um bom tempo, permaneceram assim, aguardando a recuperação da outra.

Antonina tomou a água e depois o fôlego: - Vocês são doidas, bem que Sinôco disse! Malucas! Como ousam afrontar a memória de alguém? E logo do meu Sinôco, que é morto faz dois anos hoje? Desocupadas! Andam arranjando encontro com defunto é? Arrumem mais o que fazer! Indignadíssma, afastou-se.

Ficaram inermes. Sentiam-se terrivelmente mais viúvas agora. Somavam ao próprio luto, pavor e espanto. Daqui em diante, assombro e silêncio seria o preço pelo desluto. E Sinôco, naquele dia, bem que tentara se despedir delas...

 
 
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