AS AMIGAS
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Ronaldo Torres
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"Deus,
livrai-me dos amigos; Eram duas amigas-irmãs, ligadas pelo cordão umbilical cibernético, unha e carne, carne e unha, e o segredo mais recôndito era escancarado nas longas conversas diárias. Era e-mail pra lá, e-mail pra cá, MSN pra lá, MSN pra cá, telefonemas de hora em hora e, quando se fartavam da telinha de vídeo, pegavam um avião e se encontravam em um ponto intermediário, geralmente o Rio de Janeiro. Às vezes acontecia de uma se hospedar durante semanas na casa da outra, mas isso era menos freqüente. O fascinante na internet é o conceito de distância que concebemos: às vezes a gente conversa com um cidadão que está logo ali, na esquina, e pensamos que ele está no Japão; às vezes conversamos com uma pessoa achando que está no Japão e, no entanto, pode estar um andar acima ou abaixo do nosso. Elas sabiam que moravam distantes uma da outra, mas isso não tinha a menor importância. Depois que inventaram o avião, as distâncias encurtaram e, volta e meia, estavam trocando figurinhas ao vivo e à cores. Uma morava em São Paulo; a outra, em Londrina, Paraná. Uma era bancária em pleno gozo do benefício do INSS. De tanto contar dinheiro pra Marcos Valério e Delúbio Soares, adquiriu a tal "lesão por esforço repetitivo", abreviada, "L.E.R.". Parece ironia: o trabalhador adoece, é obrigado a ficar em casa, recebe o salário pela metade, e chamam a isso de "benefício". Que benefício, cara-pálida? Passa a vida contribuindo para a Previdência e, na hora que precisa, o Governo vem com essa de "benefício". Onde está o direito do contribuinte? A outra era um parasita: além de consumir a parca pensão da mãe, se auto-intitulava a rainha da Net e se orgulhava de não fazer nada na vida, a não ser rodar de site em site, de grupo em grupo, feito vírus à cata de hospedagem. Dizia-se web-design e para ela não havia páreo. A longa imobilidade sentada à frente do monitor, causou assadura nas nádegas, depois se transformou numa úlcera purulenta e fétida e foi preciso fazer tratamento à base de poderosos antibióticos e banhos com fórmulas especiais. Sarou da úlcera, porém as nádegas ficaram marcadas por buracos e saliências que, vistas de perto, pareciam uma tábua de pirulito. Horrível. Mesmo torrando as economias da mãe no tratamento da úlcera, foi incapaz de abandonar o vício do mundo virtual. Levantava-se da cadeira apenas em duas ocasiões: quando a amiga de Sampa a visitava ou quando inventava de viajar para os encontros previamente agendados. Algumas mulheres mentem com tanta desfaçatez que enganam até o Diabo. Já outras são tão espertas que é impossível serem enganadas. A londrinense se encaixava nessa última afirmação. Por mais que sua amiga tentasse lhe embromar em negativas e evasivas, sentia que havia algo de sinistro em suas atitudes, algum segredo não revelado. Quanto mais insistentes as inquirições, mais veemência na negação, e mais certeza de que dentro daquele mato havia coelho escondido. Tanto bisbilhotou as intimidades da amiga que um dia descobriu que ela guardava reservadamente uns segredinhos sem maiores importâncias, uns contos eróticos contando em detalhes as safadezas que fazia com o namorado. Fez muxoxo, mas não se zangou da escusa da amiga em lhe falar daqueles contos. Rendeu-se ao erotismo das histórias e nem percebeu que a calcinha ficara molhada. Ao término da leitura de alguns contos, chegou à conclusão de que precisava de um homem para chamar de seu, tal qual cantava Erasmo Carlos. Sexo. Precisava de sexo. Amar como amam os animais. Enroscar-se na cama e misturar o odor do suor e do sêmen. ¡Que venga el toro! Contou nos dedos. Perdeu a conta de quanto tempo não fazia sexo normal. Habituara-se ao mouse e aos masturbadores de plantão na Net. Explodia em gozo, mas a sensação não era a mesma do sexo praticado por vias normais. Faltava o algo mais, que também não foi resolvido com um vibrador: a ejaculação, o cheiro, o suor do parceiro. O ciúme lançou sua seta negra. A amiga gozava a rodo e ficava na moita, caladinha, sem repassar os detalhes por telefone ou e-mails. Safadinha! Era por isso que vivia com aquela eterna cara de felicidade, que chegava até a irritar. Antes de retornar para Londrina, propôs: "Vamos fazer um site só de contos eróticos? Eu faço o site e você escreve sob pseudônimo. Assim, se acaso o seu namorado descobrir o nosso site, não vai saber que é você a escritora. Topa?" "Topo!" e saíram pra comemorar na esquina, pois teriam que ir para o aeroporto. O site erótico entrou no ar e os amigos foram avisados como se fosse coisa de uma outra pessoa. Ninguém desconfiou. Em menos de seis meses havia perto de trezentos contos, todos assinados por uma tal de Ninfeta Insaciável. As histórias eram as mais bizarras possíveis, resultado das noitadas com o namorado. De canguru perneta a tesoura voadora, passando pela "cachorra engatada"; e "bailarina no trapézio", era tudo relatado em precisão fotográfica. Mal o namorado fechava a porta do apartamento em despedida, ela corria para o micro e viajava nas lembranças. Fazia uma revisão rápida e enviava para a amiga, em Londrina. Ela que cuidasse da publicação. Um dia a paranaense recebeu uma notícia que a deixou à beira de um ataque de nervos, coração palpitando, disritmia aguda. Passado o susto, veio a indignação; depois, a raiva. Ela não podia fazer aquilo. Casar-se e abandonar o site, justo quando estava batendo recorde de visitas diárias. Assim não, violão! Perdera um tempo danado na montagem do site e todo o trabalho iria por água abaixo. A outra argumentava que, uma vez casada, não era certo escancarar suas intimidades por aí. Mesmo sob o manto do pseudônimo, ela sabia quem era a autora e de mais não precisava. Seria uma traição ao marido. Continuariam amigas, mas não escreveria mais para o site. Era uma questão de consciência e papo final. "Ah, não! Você vai ver com quantos paus se faz uma canoa!", pensou a londrinense, vermelha de ciúme e rancor. Pegou a sua agenda, procurou o telefone do namorado da amiga e ligou do celular. Conhecia-o apenas de nome. Todas as vezes que fora a São Paulo coincidira de ele estar viajando. Mas ele sabia quem era ela. E ia saber mais, principalmente sobre a vida obscura de sua noiva. Quando ele atendeu, ela se identificou, disse algumas palavras evasivas para não parecer fofoqueira e, em seguida, deu o serviço completo, inclusive o endereço do site. A Ninfeta Insaciável era sua própria noiva, usando-o como experiência nos seus contos eróticos. Que experiências?!, indagou confuso. Era evangélico, temente a Deus, respeitava a noiva e achava que o sexo tinha que ser praticado apenas depois do casamento. Assim mesmo o clássico "papai-e-mamãe". Deus disse: "Crescei e multiplicai-vos". O sexo servia apenas para isso. Estava na Bíblia. O casamento não se realizou. O noivo, depois de dar uma surra exemplar na noiva, sumiu no mundo sem deixar rastro. |