O RECOMEÇO
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Ronaldo Torres
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Estacionou na margem da linha férrea, desligou o motor do carro, retirou a chave da ignição e desceu. Andou displicente até os trilhos, olhou para ambos os lados, colou o ouvido na barra de ferro e ouviu barulho de passos vindos por uma vereda entre o mato crescido ao longo dos dormentes. Levantou-se sem jeito, como se apanhado em flagrante traquinagem. Eram marisqueiros dirigindo-se à lagoa, duzentos metros adiante. Caminhavam apressados, cestos na cabeça. - Bom dia, amigos! A que horas o trem passa por aqui? - Bom dia! O próximo passa às dez horas, vindo de Maceió. - Obrigado. Dez horas. Conferiu o Rolex: os ponteiros acusavam nove e vinte. "Há tempo de sobra", pensou. Retornou ao carro. Apanhou a agenda no porta-luvas e conferiu as anotações. Havia um lembrete em cada página e, grampeada a ela, certa quantia em dinheiro. Não podia se esquecer de nenhum detalhe. Suspirou fundo e devolveu a agenda ao seu lugar. Junto, colocou também o relógio e a carteira. Em seguida descalçou os sapatos e as meias, colocando-os no piso do carona. Desceu, pegou um graveto e esvaziou os pneus traseiros do carro. Travou as portas por dentro, sentou-se na capota do motor e aguardou. Era uma manhã quente de Primavera e havia um estranho silêncio no ar, quebrado apenas por vozes ao longe, dos pescadores na lagoa. Maldisse-se por não ter estacionado à sombra de uma árvore. Calculava faltar ainda uns quinze minutos e, sob aquele sol abrasador, cada segundo parecia uma eternidade. A camisa estava encharcada de suor e a cabeça fervia ao léu. Será que o Tempo havia parado? Lembrou-se do dia anterior e da discussão que tivera em casa. Era a primeira após dez anos de casado. Temia ser apenas o início de uma lengalenga irritante e despropositada. Tudo vai bem quando se está bem. Um passo errado na vida é o suficiente para fazer desmoronar os castelos dos sonhos. Fogem os amigos, os parentes somem e dissolve-se a família como bolha de sabão. De herói, passa-se a vilão. A vida é um jogo e ele foi imprudente ao arriscar todas as fichas num único lance. Deu preto, 17. Perdera tudo, até mesmo a chance de reconstruir um novo império. Um recomeço, nas atuais circunstâncias, descortinava-se totalmente inviável em face do descrédito que ficara. E o principal entrave chamava-se "família". Pelo visto, para ele não cabia a máxima "infeliz no jogo, sorte no amor". Recordou-se dos tempos em que era tratado com deferência pelos amigos e paparicado pela família, principalmente pelos parentes da mulher. Tardiamente constatou que o gostar é volátil e o afeto é efêmero. O vil metal é que é a mola propulsora dos chamados sentimentos nobres, a essência sedutora do amor, o agente aglutinante da instituição família. Tudo por dinheiro. Velhacos! Sentiu uma doce e estranha saudade dos seus tempos de menino, livre do peso das responsabilidades e das constatações doridas. Parava naquele mesmo lugar, à espera do trem para pegar um bigú até o centro da cidade. Era perto, podia pagar a passagem, mas o gostoso era a aventura de enganar o picotador, um homem bruto e cruel. Ameaçava atirar fora do trem em velocidade aquele que se recusasse a pagar pelo transporte. Uma vez deu um vacilo, entrou num vagão cujos bilhetes ainda não tinham sidos picotados. Nesse dia ficara sem o sorvete extra. Depois de tantos anos, será que ainda conseguiria pegar um bigú? Acertaria o vagão já conferido pelo picotador? E até onde iriam os trens de hoje? Não importava. Nas atuais circunstâncias, o que menos queria saber era em qual lugar iria parar. Quanto mais longe fosse o fim de linha, melhor seria. Planejara o seu recomeço de forma inédita e radical, sem lenço, sem documento, sem dinheiro no bolso ou parentes importantes. Seus pensamentos foram interrompidos pelo apito longo e rouco do trem. Parecia um angustioso lamento. Aproximava-se em velocidade acima da praticada em seus tempos de garoto, estremecendo o entorno da linha. Temeu não conseguir seu intento. Lembrou-se que, no antigamente, pegava bigú indo para o Centro, e os comboios passavam diminuindo a velocidade. Aquele fazia o sentido inverso, acelerando. Se não errara nos cálculos, a locomotiva puxava sete vagões. Desceu do capô, flexionou o corpo em posição de corrida, e aguardou. Viu passar a locomotiva. O maquinista acenou com a cabeça e apitou em saudação. Adivinhara suas intenções? Passou o primeiro vagão rangendo suas rodas metálicas no ferro dos trilhos. Balançava como barco à deriva. Divisou o picotador discutindo com alguém no terceiro vagão. Estava de costa para os fundos, sinal de que começara pelo último. Os outros estavam livres. Recuou uns metros. Fez o sinal da cruz, respirou fundo e correu em direção ao quarto vagão, precipitando-se, de mergulho, entre as rodas limadas do quinto e demais comboios. |