SOLO
Edison Veiga Junior
 
 

Com suas asas brancas, o demônio domina molduras estereotipadas e, livro na estante, brinca de quebrar instantes.

Solo de sax. Gelo seco. Sorriso e saudade.

No canto do sofá, Anselmo folheia uma revista velha, mas quem dera se distrair. Pensa na pena que viu escorregar hoje pela sua defesa. Acaricia a barba e, na imaginação, encara a carranca do juiz inexorável, com seu martelinho a determinar os tantos anos de prisão ao seu cliente.

Se mais gente houvesse, um amigo ou uma mão, estaria justificado Anselmo e sua implicância em se acomodar no canto do sofá. Que nada! Anselmo era sozinho, como um solo de sax, como um gelo na garganta seca, nunca sorriso, sempre saudade.

Ali na renitência bruta do ambiente quieto, perambulava o demônio e suas asas brancas, como eu já lhe adiantei no primeiro parágrafo mas você não acreditou porque julgou a imagem pouco verossímil. Não, não adianta disfarçar; eu também já fui leitor e sei bem como é isso.

E o demônio é invisível aos vivos. Anselmo julga-se só.

Até que.

O demônio espirra.

Todo-mundo sai correndo.

(Ainda bem que todo-mundo é só Anselmo, senão teríamos um alvoroço!).

Quando ele tropeça, acorda em sua cama, pelado, suando frio. Tudo bem, tudo bem, outro pesadelo, o julgamento de seu cliente é só amanhã, às 10 horas, não é mesmo?

O único detalhe é que, na sala, a mesma revista velha está aberta, ao chão. E o CD de jazz, findo, repousa no deck.

Com suas asas brancas, o demônio domina molduras estereotipadas e, livro na estante, brinca de quebrar instantes. Saudades de quando era anjo, o mais belo, o mais poderoso, o mais sozinho.

O demônio nunca aprendeu a tocar harpa.

 
 

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