PINÓIA
Lia Falcão
 
 

Chegava diariamente esbaforida à repartição e começava mais uma maratona para dar conta das pilhas de afazeres dentro das próximas sete horas. Muitas vezes sem pausa para descanso. Ligava o computador, enquanto desligava o celular e escrevia a senha na tela faminta. Aquela tela tinha um azul quase insuportável e exigia-lhe a senha para deixá-la trabalhar em paz. Parecia ter alguém dentro do computador sofismando: - Muitas letrinhas terás que digitar, minha filha, até que teu horário se cumpra! Arre.

Nome, ok. Senha, ok. Piii. Não entrou. O que será que foi agora? Control, alt, del. Log off. Musiquinha infernal. Log on. De novo. Nome, senha, ok. Pausa. Piii. Não aceitou de novo? Mas seria possível? Esquecera do próprio nome? Seria outra a senha? Esse era o problema: não lembrava nem de um que dirá do outro. Tinha vários nomes significativos, até bucólicos, para senha própria, afinal...

Piii... Pronto. O que seria dela sem nome e sem senha para iniciar o trabalho? Abreviou o nome, nada. Escreveu o nome completo. Necas. Em inglês. Nothing. Em espanhol. Neruda. Pôs identidade, CPF. Grupo sanguíneo. Nadica de nada. Estava ficando louca. Olhou ao redor e viu os rostos dos colegas já imersos no próprio trabalho, interativos. Considerou a possibilidade de ir embora bem de mansinho, só de vergonha. Ninguém notaria mesmo.

Doze horas, doze minutos e ela ainda sem log in. Mais um BIP demorado e outro log off. Resolveu tomar outro cafezinho e apelar pra algum santo. Triiim. Triiim. Alguém do setor de informática confirmava sua senha antiga e prestara um enorme auxílio à humanidade. Dela, é claro. Ninguém no escritório notara seu ataque de nervos. Não fora isso, já teriam mandado interná-la.

Senha digitada às doze e vinte e dois. Prometera-se que não perderia mais a compostura por causa da pane desses chips. Reiniciada a máquina, começou a digitar as primeiras letras de sua senha e lembrou-se, então, de que naquela manhã, exatamente às seis e quarenta e cinco, saíra de casa desesperada para entregar os exames solicitados por médicos e não havia tomado café. Farto jejum de doze horas para simpáticos exames de rotina.

Já em pleno laboratório, listara as compras de casa e, terminado os exames clínicos, disparara para o supermercado. Exatamente às oito e cinqüenta e oito, chegara ao mercado, com esperança de um dia, sair de lá, tal era o burburinho das criaturas atrás das melhores ofertas. Cinquenta minutos depois, estava exausta, suada, com fome, com sede, tonta e sem energia para atender aos chamados do celular. O filho caçula esquecera um livro em casa e pedia para ela levar à escola. Nada feito. Não havia tempo e ele teria de ir à biblioteca ou valer-se de algum colega com vocação para samaritano.

E haja nervos! Era sua impressão ou a moça do caixa vinte e três estava se maquilando em pleno expediente? Que vontade de berrar por uma água gelada! Precisava sair dali urgentemente mas, para isso, teria de descarregar a feira, guardá-la, correr para o chuveiro, parar em frente à geladeira, encher o copo com água e enfim sorvê-la. Sonho dez. Possibilidade zero. Enquanto isso, a moça do caixa ao lado pusera batom descaradamente. Assim não era possível. Alguém esquecera de avisar àquela moça que ser gente e ser símio não é a mesma coisa! Vai ser praga em Budapeste! Agora, ante a pequena fila de clientes estapafúrdios, a mesma criatura atendia o celular e dava ordens a uma provável secretária doméstica num tom, no mínimo, fora de hora. - Fulana, isso! Fulana, aquilo! E a fila literalmente desandara. Ninguém merece! Ela ali, em jejum compulsório, aglutinada e torturada por ouvir as queixas da madame contra a infeliz daquela beltrana.

Eram onze e lá vai pancada quando a madame desistiu de telefonar e recomeçou a passar as compritas para o bem geral da nação. E rápida como uma cágada. Quando foi hora de passar o cartão e pagar, o relógio acusava onze e mais um pouquinho. Não iria conseguir. Ou pagava as compras e ia para casa tomar um belo banho ou iria trabalhar. Arriscou a primeira opção e correu feito louca para cumprir a segunda. Já em casa, foi surpreendida pelo telefonema acusador da ausência da secretária doméstica pela segunda vez naquela semana. E era apenas uma mísera terça-feira.

Jogou-se no sofá com as compras, atendeu mais um telefonema e chispou para o escritório com a luz do painel do carro apagada. Enfim, chegara esbaforida ao trabalho. Como sempre. E, como sempre, coisas que só faziam sentido àquela hora vieram ao seu pensamento. Afinal, ela chegara ao trabalho, sua alma ainda não! Pensou em voz alta:

- Sabe de uma coisa, seu computadorzinho de uma figa? Não tem jejum, não tem chatice de madame, não tem correria que me pague a alegria de poder te desligar a hora que eu quiser, tá entendendo? Fique sabendo que eu gosto de fazer feira, de fazer exames, de correr feito uma louca prá dar conta do meu recado, tá legal? Agora, se tem uma coisa da qual eu gosto mesmo é saber que essa tua conversinha acaba num TEC! Vai encarar? Então? Vai fazer logo esse login ou vai querer um log off bem no meio das fuças?! Ahn?!

Piii...

 
 

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