ELA
Edison Veiga Junior
 
 

Era pregressa e, portanto, já nascera condenada a ruminar reminiscências nada aprazíveis. Troglodita, mas não poliglota, amaldiçoava os idioletos irreversíveis e sonhava com as vivências de antemão.

Havia sido de tudo: secretária, aeromoça, modelo, professora da quarta série, bióloga, curadora da exposição do Picasso no Brasil, jardineira e aquela mulher que se queda na janela com um sorriso natimorto a contemplar a efemeridade do cotidiano.

Quando completou certa idade, cismou de ser atriz. Assim, enfeitando a existência de personagens imaginários, conseguia se tornar mais semelhante aos seus semelhantes, por mais irônico que possa parecer. Não carecia salário; só o ser lhe bastava. Ficou nessa por quatrocentos e vinte e dois dias, até que tropeçou numa pedra grande e, ao bater a cabeça no chão ou no cabo de uma enxada, lembrou-se que estava enjoada de tudo e bom mesmo era ser astronauta.

Pisou na Lua em 1969, vestindo pesadas roupas que flutuavam. Retornou com a boca ressequida pelo trauma do sabor cumprido e a ressaca do prazer experimentado. Era uma bela história, que certamente seria compartilhada, contada e recontada a seus filhos, netos, bisnetos... Se herdeiros ela legasse ao mundo.

Nos tempos de faculdade, passou o curso todo na necessária porém entediante função de organizar a sala em equipes, em grupos, em duplas, em unidades, sempre para promover seminários, debates, solilóquios, elucubrações, partidas de pingue-pongue, campeonatos de truco, bacanais (que, etimologicamente, são idênticos aos seminários!) e afins. Como prêmio e mostra de reconhecimento, foi laureada com um diploma de bordas douradas. Extremamente démodé em seu figurativismo desprovido de apuro estético, mas é inevitável ressaltar que ela derrubou lágrimas emotivas durante a cerimônia.

Na Queda do Muro, ela foi a pedra. Depois o vãozinho, depois o cimento, depois o chão. Nas eleições, ela foi o xis, depois o branco, depois o nulo, depois o botão verde. No conclave do Papa ela foi o senão, o porém, a chave.

Ela sempre esteve presente, como vítima, como protagonista ou como figurante, em todos os momentos da História.

Em seu primeiro emprego, apaixonou-se. Chamava-o de Mor, mas seu nome era Morte. Ele era um pobre desdentado, responsável, na empresa, pelo ingrato Departamento de Conserto de Clipes Destroçados. Desdentado, desvalido e feio. Vestia preto o tempo todo, que, segundo o próprio, era para "poupar tempo na escolha". Na verdade se tratava de recurso para que ninguém reparasse no irrisório número de exemplares de seu guarda-roupa.

Em seu primeiro emprego ela era bailarina de enfeite. Ficava na mesa do chefe e dançava quando ele ligava a caixinha de música. Ele sonhava com ela. Ele não sabia que ela era só do Morte. Ele não sabia que ela teria o Morte como revés, como companheiro, como indissolúvel, como alma gêmea, por toda a eternidade. Ele não sabia que amar era esse se completar onde um só é possível sendo dois.

Ela gostava de cozinhar mas nunca sabia direito a porção de água pra cada naco de arroz, ou o inverso, ou o desverso. Recitava versos sobre as panelas, como se as rimas fossem de feitiçaria. O marido não dizia nada, fingia que acreditava. No fundo compreendia a essência de ser marido.

No acordar era doce. No dormir, selvagem.

No soluço era um sossego. No orgasmo, um desespero.

Cabiam em si todas as antíteses, desde as mais gastas até as mais belas.

Poderia se chamar Poesia. Mas seu nome era Vida e, cheia de surpresas, aceitou ser capa da Playboy aos 47 anos.

 
 

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