MEDO
DE ESCURO
Marco Brito
Tinha medo de escuro. Verdade. Um homem daqueles e com medo de escuro... Pra ser mais explícito: "tinha aversão ao breu". Quem falava assim era seo Leôncio da farmácia, o homem que mais falava difícil em toda a cidade, até mais que Dona Quitéria, a professora. Pra se ter uma idéia: a farmácia dele se escrevia Pharmácia Nidiane, pode? Mas a gente falava da birra do escuro. Não por covardia, muito pelo contrário. Pois que ele tinha fama de valente. Em toda a redondeza não existia um pé de pessoa que não o conhecesse. Era-lhe chamado de João Mão de Onça. E as estórias são verdadeiras. Foi logo quando começou a trabalhar pro seo Oliveira, o fazendeiro mais rico da região. Podia nem ser tanto, já que naquelas bandas, falar de dinheiro era novidade, mas é o que o comércio todo dizia. Bom, falávamos de João: tinha lá seus dezoito anos. Acabara de perder o pai - mal do coração - e precisava mais do que antes, garantir o sossego da mãe. Tinha mais cinco irmãos: o Tico, o mais velho, e quem tocava a roça, o Toninho, o Cuíca, a Tonha e Dú, o caçula com dois anos. Ele era o terceiro, atrás de Tico e Toninho. Pois bem, Seo Oliveira, no sábado da feira, andou mercando que precisava de um vaqueiro novo pra botar no lugar de Daó, que picou a mula depois de ter furado o bucho de um outro na festa das quengas. O delegado, por ser de fora, não era de considerar e então... Aí, na segunda de manhãzinha, chega o moço lá na cancela da casa do administrador. - Dia, seo Dílso! - Dia Jão. Qui qué? - Vim vê se ficava com a vaga de Daó. - Cê qué a vaga? E tu sabe lidar com gado, home? - Quem muntava nas mula lá em casa era eu. E quem cuidava dos bezerro até antes de pai morrer era eu também, então... - Vai tê qui trabalhá com Negão Osvaldo, e cê sabe qui o home é chato. - Chato é a fomi seo Dilso, é chôro de minimo piqueno no pé de uvido. Isso é qui é chato. Passou, foi empregado e caiu nas graças não só do Osvaldo como também do patrão. Foi assim: numa sexta de tardezinha, na hora de "pegar a semana", tava sentados na varanda, o patrão, Dilson, Osvaldo, seo Terêncio, que era o médico da região nesta época, D. Laurinha, mulher de seo Oliveira conversando de lado com D. Diva - esposa do doutor - e o João. Quando Dilson vira-se para o patrão e diz: - Ói patrão, a nutícia num é boa não. Aquele gato voltou a rondá os nuvilho. O Pedro de seo Mauro já viu o bicho, e ôje nóis encontrou as pegada dele na manga. Seo Oliveira deu pra ruim. Xingou, esbravejou e esbagaçou o charuto novinho que pusera na boca. - Não é possível Dilson. Não pode ser, já tínhamos enxotado esse bicho daqui! Mais essa agora, mais essa! Todo mundo calado, não se tinha o que dizer. Não se tinha não: - Patrão? - Que é João, o quê você quer? - Se o sinhô quizé, eu mato o bicho. - Mata o quê João, como é que mata? - Se o sinhô quiser eu mato. Falou de modo tão firme, de maneira tão tranqüila que todos prestaram atenção. - Mata mesmo? - Mato. - Como, quer um rifle? - Não, só quero pudê durmir nos meio dos corderos. Deixa os animaus lá no cercado prêso e eu durmo cum eles, o resto pode deixá qui eu sei fazê. - Não quer mais nada, tem certeza? - Tenho, só preciso é durmir lá. Dito e feito, naquela noite, e nas duas seguintes, João dormiu no meio dos cordeiros, no jirau armado no meio da manga. No primeiro nem sinal do felino. Não que não estivesse por ali, estava, mas sentiu cheiro do homem. Noite seguinte, o bicho rondou, já deixou a cordeirada assustada, já miou pertinho, pertinho. Foi na terceira noite. Passando das uma da manhã, uma lua morta meio que escondida por trás de uma nuvenzinha. Justamente nesta hora, quando a lua se escondeu atrás da nuvem, é que veio o bote. Quando a bichona saltou por cima dos paus, que passou a unha numa das ovelhas, João deu seu bote também. Juram as línguas que a esturrada da onça encheu o céu todinho. O miado não foi de vitória não. Foi de dor. Dor e surpresa quando sentiu as sete polegadas do aço frio entrar pelo lado da garganta e sair pelo outro. Só deu tempo dela virar o corpo, e mandar um tapa na direção de quem segurava a faca... Dia seguinte, com a neblina ainda cobrindo o pasto e fazendo com que a gente não enxergasse nada além de duas dezenas de metro, é que veio a notícia. Ocorre que João é quem vinha tirando o leite do gado, e o trabalho de ordenha começa por volta das quatro da manhã. Naquele dia, justamente, João não veio. Quando Osvaldo viu a bezerrada ainda presa no curral, as vacas mugindo na porteira. E quando botou o nome do homem na boca pra largar o xingamento, é que lembrou da onça. Da onça e da promessa de João de matar o bicho. Aí foi o corre-corre. Pega o cavalo, pica esporas e quando chega lá o que vê é a sussuarana com a garganta aberta de um lado a outro, o pobre do João, com a cara toda ensangüentada e um corte que vai da testa até perto da orelha. A barricada partiu-se e cuspiu cordeiros pra tudo quanto foi lado... João foi encontrado desacordado e só voltou a si, depois que o Dr. Terêncio o costurou com quinze pontos entre internos e externos. A garra do animal, pra sua sorte, errou o alvo, e só o atingiu por cima da sobrancelha, de cima pra baixo, arranhando por alto sua face direita. A visão não fora afetada. Quando recuperou a consciência, olhando ao redor, fixou sua vista no patrão e disse: - Num disse qui matava? Tem também aquela outra do jacaré. Aquela que seo Oliveira duvidou que alguém pegasse o jacaré da lagoa... mas isto lá é outra história. O fato é que ficou, assim, conhecido por toda a região. E quando se fala do seu medo de escuro, todos dizem: - É medo não, é só birra. A verdade é que João, com toda essa valentia, tem medo mas é de morcego. Morcego pode? |