VETOR
Reinaldo de Morais Filho
 
 
Pareciam estacas contra meu peito. P. ia andando no corredor, a passos firmes, em direção à casa de meus pais. Iria apresentá-los. Antes fossem estacas em meu peito, cravando minha morte.

Ela andava na frente. Já estivemos ali em uma outra ocasião, eu ainda casado com L., quando desejei impressioná-la com a coleção de objetos de arte da minha mãe. Eles viajaram, e eu deveria cuidar dos bens. Jogaram-me a responsabilidade, eu joguei P. no sofá mais próximo.

Andava em um rebolado vulgar, mexendo os pés, as ancas, os ombros. O prédio inteiro cambaleava com o toque estridente do salto no piso de taco. Eu ia esquecendo do seu lado promíscuo perdido nos decotes do seu vestido, justo, curto, preto. Um casaco de couro vermelho completava o ar vil.

Ia apresentá-la como noiva. E conhecer minha mãe em estado de coma. Imaginava o tailler que ela estava vestindo, sempre comportado, formal, seco. Apesar de adequado para uma senhora de cinqüenta e três anos, repugnava-me ainda: desde que me entendo por gente, desde minha primeira imagem, não consigo ver um reles decote em seu corpo, hoje decadente - perdeu a chance.

Nasci em uma família conservadora, com um espírito revolucionário. Para uns falta-me decência, para outros, elegância. Eu digo que lhes falta caráter, bando de falsos, metidos a nobres em um mundo onde o título não vale um vintém diante da fortuna. Beijam os pés de um porco, enquanto houver ouro perdido na lama.

Casei-me com L. com o chicote da deserção a rondar-me a cabeça. L. morreu; talvez eu a matei, tamanho era meu desejo da separação. Acabei levando os outros passageiros. Chorei sobre os destroços do avião, sem saudades: L. merecia um enterro, uma lápide, uma vida longe de mim.

Deu-me a carta de alforria. Meus pais não ousaram casar-me com mais ninguém, deixaram-me livres das cobranças, fiz minha parte. Deixou-me a lembrança de um olhar triste, de quem sabia que era traída todos os dias, de quem sabia da minha ausência de espírito enquanto cumpria as obrigações matrimoniais, de quem nunca ousou me trair - responsabilidade, medo, honra, burrice.

E agora estava de volta naquele corredor, pensando em L. chocando-se na montanha, nas curvas do morro. Como um dia choquei-me nas curvas de P., bati a cabeça, perdi o juízo. Ainda tinha tempo de cancelar, o corredor era enorme, a coragem, nem tanto. Ela tocou a campanhia.

Puxou os parcos tecidos para baixo, cobriu as pernas, mostrou os seios, puxou a jaqueta. Chamaria a atenção em qualquer ambiente decente, passaria desapercebida em um cabaré. Meu pai a estudaria palmo a palmo, quando sua esposa fosse enxugar a lágrima, apagar a decepção no toillette.

Perdeu a vergonha da minha presença. Desde os últimos jantares com L., certa vez comentou sobre suas nádegas, fez apontamentos eróticos, perguntou como era o sexo. Conteve-se após as respostas ríspidas, indelicadas e chulas que disparei. Nem sei porque me incomodei; cada um na sua.

O velho que abriu a porta. Sorriu ao me ver, roçando os dedos no bigode cultivado com esmero. Os fios brancos cobria-lhe a fronte, sem esconder a ironia da sua saudação: senti como se já soubesse da nova nora. Beijou-lhe o rosto, com os olhos sobre seus seios. Empurrou-me para dentro, hesitei em entrar.

Ligações perigosas entre mundos distintos. Eu era o elo. P. andava desinibida, sem temer a queda, a ofensa, a distância que estava do seu pequeno conjugado em um bairro na periferia. Personalidade ou ignorância?

Fiz a mesma pergunta quando ela exigiu o noivado, esta apresentação, para se juntar comigo. Dezenove anos, virgem, ingênua. Encara a vida como entrou no apartamento naquela noite: destemida por não conhecer a força do inimigo.

Não tinha idéia da minha. Força malévola: levei-a em um ginecologista de confiança para comprovar sua virgindade, aceitei o jantar, o noivado, o charme, para levá-la para minha casa, para o meu sofá, onde não teria os argumentos que usou na primeira noite, no lugar que agora revisitamos. Usei meus pais, sem respeito, dó, nem piedade.

Meu pai andava atrás de mim, mas podia ver seus olhos pregados na bunda de P., nas curvas perfeitas, na pele morena com pêlos loiros, na juventude. Ela ia na frente, altiva e imprudente, em direção a minha mãe, sentada na varanda, com uma taça de prosecco na mão direita.

Alcancei o braço de P., contive sua pressa, deixei meu pai nos guiar. Um suor logo surgiu entre nossos dedos nervosos, puxei da saliva dela para molhar os lábios ressecados. A velha ergueu-se, quase caí.

Ligações perigosas entre mundos distintos. O branco levou a doença ao povo indígena, o índio devolveu-lhe em forma de ganância. Lembrei das aulas de ciência, reprodução sexuada entre bactérias, troca de material genético, o simples toque entre DNA's modificava ambas. Haveria um contato que mudaria a vida de todos.

Minha mãe manteve-se equilibrada, o susto não durou mais que um segundo, imperceptível a olhos estranhos. Revidou o sorriso de P., nem tanto o abraço íntimo. Ofereceu uma cadeira, voltou à bebida, acabou de um gole o resto da garrafa, enquanto meu pai abria uma outra.

Avancei nas formalidades, fiz o brinde, a comunicação oficial, o convite para sentar na mesa. Engoli a comida, a boca cheia para não ter que mudar meu discurso: 'sim'. Não ousei discordar de quem fosse, não ousei escutar o que P. falava sobre suas decisões, planejamentos, desejos.

Em uma ponta da mesa, meu pai olhando, indiscretamente os seios da nora, que quase saltavam do vestido - ainda mais à mostra quando largou em algum móvel o casaco vermelho.

Na outra ponta, minha mãe mantinha a parcimônia e a paciência. Sorria insistente, com movimentos lentos, uma voz pausada; um comportamento demente que denunciava a bebida, que me fazia supor que tomara drogas mais fortes.

Em frente a P., eu fingia interesse enquanto comia, com os pés dela me bolinando sob a mesa. Indecente, sensual, vulgar. Continuava falando, sem perceber que não agradava. Ninguém reclamou quando me levantei. Fiz um último brinde, "à mulher da minha vida". E só ela acreditou.

Àquela altura, nem desejava o corpo de P., desejava, tão-somente, sair dali, recompor-me de todo constrangimento. Olhar o céu, olhar para cima, poder erguer meu pescoço, recolhido desde o instante que entrei no apartamento.

Preocupava-me com o comportamento dos meus pais: não era do feitio deles fingir por tanto tempo. Embora não destratassem qualquer convidado, costumam abrir a boca, apresentar sinais de sono, recolher-se aos aposentos, desculpar-se com um compromisso urgente.

Não fizeram sequer menção de cansaço; talvez se não me pronunciasse, ficariam na mesa noite adentro, dispostos a ouvir os planos mirabolantes e imbecis de P., dispostos a me humilhar com meu próprio erro. Houve uma certa decepção quando saímos.

E P. não era aquilo que se poderia facilmente julgar como erro. A luxúria lhe tomou os ares, abraçou-me com volúpia no elevador, beijos ardentes, mãos safadas. Sussurrou no meu ouvido que estava na hora, que havia que cumprir sua parte no compromisso, que me daria um bônus pela simpatia dos meus pais.

Que pais? Só pude lembrar deles quando o dia amanhecia, depois de ter elaborado os passos para largar P. sem manchar minha imagem. Ela estava na cama, com um sorriso ignaro nos lábios, um sorriso e nada mais no corpo perfeito; talvez sonhasse com o casamento. Demoraria o quanto fosse preciso para saciar meu desejo; não seria assim tão breve, não seria assim tão duradouro.

Ligações perigosas. Fui o elo entre meus pais e as pessoas sujas que conheci nas ruas. Dos amigos mais inescrupulosos, até esse noivado incosenqüente. Contagiei-os com minha presença. Fui o elo entre a doença e o corpo sadio, levei a dor onde havia saúde. Transformei minha vida, a de P., a de meus pais em algo que, embora não pudesse julgar pior, não conhecia, nem podia prever. Tornara-os estranhos; eu, também, um desconhecido a mim mesmo. Nem me reconheci diante do espelho.

 
 
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