MORREU NO TRÂNSITO... E NÃO SAIU DO LUGAR
Bruno Freitas
 
 
Dirigia tão vagarosamente que nem viu a vida lhe passar por um fio. Infartou-se a beira do meio fio, trajando o metálico dourado do último modelo popular do ano. Trafegava parado quase andando, e nem assim, saiu do lugar.

Tudo isso acontecera por culpa de um motorista insensível, que atravessou a pista chutado, trajando milhares de cavalos de força e forçando a passagem por entre os outros modelos mais vagarosos. Toda a configuração resumia-se numa fila intensa e extensa, esperando o sinal verde que indicava a passagem. Foi quando atravessou pelo acostamento, um navalha cortante e deslizando pelo asfalto.

Aquele navalha já vinha voando baixo, cortando a frente dos outros, retornando pela contra-mão, ultrapassando pela esquerda, infringindo o código de trânsito, atropelando o passeio dos pedestres, avançando por cima das faixas, e costurando os outros carros em ponto duplo, e ultra-resistente.

Enquanto isso, os carros que futuramente esperariam pelo sinal verde, trafegavam vagarosamente, usando o freio freqüentemente, obedecendo sempre a velocidade da via, oferecendo passagem aos pedestres, ultrapassando somente com muita certeza, trafegando sempre pela direita, infringindo o código de trânsito, respeitando seriamente as faixas, e a distância permitida entre um carro e o outro.

O navalha vinha eliminando os transeuntes por intimidação. Desenhando faixas pretas por todo o asfalto, e desgarrando do solo por um fio de borracha queimada. Transformando a avenida num autódromo, concorrendo à taça dos campeões, na tentativa de quebrar a barreira do som. Trafegando à anos luz de distância de todos os outros concorrentes. Talvez na falta de concorrentes a altura, ou de um poste que lhe barrasse o caminho, o navalha prosseguia sem sofreguidão.

Os concorrentes, não faziam idéia da contenda, e prosseguiam absortos no pensamento socialista de que cada um tinha sua vez. Seguiam livres de qualquer preocupação, qualquer compromisso inadiável, e horário apertado. Seguiam dispersos na condição de que seu transporte fosse uma extensão de sua pessoa. Aliás isto era um pensamento geral e de comum acordo entre todos os concorrentes, mesmo aqueles que não possuíam a pretensão de alcançar a taça dos campeões.

Por isso, quando estacionaram a frente do semáforo vermelho, não faziam idéia de que o grande prêmio dos campeões estaria recomeçando, tão logo o sinal verde anunciasse. Assim que acendeu o verde, liberando a passagem, os concorrentes alheios à contenda nem tiveram tempo de engatar a marcha primeira, o navalha veio furando a fila comunista, queimando a largada e ultrapassando a ferro e fogo todos os que ficaram para trás.

O carro morreu, o ar faltou, o cérebro falhou, e o coração parou, com o grande susto de ter uma perfeita ultrapassagem pela esquerda. A busina disparou, o alarme da safena tocou, e foi como se sua vida inteira passasse por um fio imaginário bem defronte seu retrovisor. Desencarnou vagarosamente, respeitando os sinais de trânsito, acatando as faixas de pedestres, usando a faixa da direita somente para ultrapassagens, e trafegando pela esquerda. Guiando sua alma cautelosamente em direção ao céu, sem infringir uma única vez o código de trânsito.

 
 
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