ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE
Mariazinha Cremasco
 
 
Formavam um estranho casal. Não pela altura, já que ela era bem mais alta que ele. Nem pela idade - ele era bem mais velho que ela. Eram estranhos pelo comportamento. Olhares de ódio faiscavam a todo momento entre eles.

Ambos eram inteligentes. Tinham uma certa cultura. Mesmo nível.

Ele era irônico, sarcástico. Seus comentários machucavam. Feriam a ela e às outras pessoas. Sabia sempre cutucar a ferida de quem quer que fosse. Era detestado por quase todos.

Ela também tinha um gênio terrível. Personalidade forte. Não deixava por menos, mas sofria muito. Dizia que não dormiam juntos desde o nascimento da única filha. Achava que ele preferia a cachorra a ela.

Nos finais de ano, nas reuniões de família, ela se derretia com o romantismo dos especiais de Natal. Chorava sentida. E ele a olhava com o rabo dos olhos, aquele seu olhar de ódio.

Ninguém entendia aquele relacionamento mórbido. Estavam sempre juntos, mesmo se odiando.

Um dia ele passou mal. Ela o levou ao hospital. Adorava dirigir. Até hoje gosta. Ele estava com muito medo, pedia a ela para ela correr, ir mais depressa. E ela foi cada vez mais devagar.

Diagnóstico: Acidente Vascular Cerebral. Seqüela: lado direito do corpo paralisado. Fala afetada. Intelecto: perfeito! Ele sabia e sentia tudo o que estava acontecendo.

Ela se vingou. Cuidou dele, mas à sua maneira. Empurrava-lhe comprimidos goela abaixo. -"Toma, desgraçado." Socava-o no carro duas, três, quatro vezes por semana para levá-lo às sessões de fonoaudiologia e fisioterapia, além do neurologista. Ele a obedecia. Sempre com aquele olhar de ódio.

Aos poucos ele foi se recuperando. Voltou falar normalmente e a andar com dificuldade. O braço direito, porém, continuava "esquecido".

Um dia, dois ou três anos depois, foi ela quem sentiu-se mal. Vizinhos socorreram. Diagnóstico: Acidente Vascular Cerebral. Seqüela física: nenhuma. Intelecto: afetadíssimo. Problemas de fala e memória.

Ele passou a cuidar dela. Na fase crítica - e apenas durante esta fase -, seu olhar não era de ódio. Era de piedade, carinho, amor. Dava-lhe os remédios criteriosamente. Sempre levados por parentes ou vizinhos, iam juntos à fonoaudióloga, à fisioterapia, ao neurologista. Ele jamais a deixava sozinha.

Ela não tinha como progredir. Lembrava coisas de um passado distante, e não se lembrava de fatos recentes. Não sabia mais ler. Não conhecia números. Uma incógnita, o cérebro!

Recentemente ela manifestou vontade de voltar a dirigir. Em dia com a lei, documentos em ordem, o médico autorizou. - "Sozinha não pode". Começaram a sair de carro juntos. Ele ensinava o caminho, ela dirigia. Quando iam ao supermercado, ele fazia a lista de compras, ela empurrava o carrinho e o descarregava. Ele pagava. Resumindo: ela passou a ser a parte física, braçal e ele a cabeça pensante, o intelecto.

Não é raro encontrá-los em supermercados, padarias, num consultório médico ou em festinhas de família. Sempre juntos. E sempre com aquele mesmo olhar de ódio... até que a morte os separe.
 
 
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