ESPELHO,
ESPELHO MEU...
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Helô
Barros
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Há
dragões escondidos nesta história. Melhor ter pressa, urgência de contá-la,
antes que estes monstros guardadores de assuntos a devorem.
Tudo começou com o meu primeiro par de óculos. Dificuldades para leitura, sabe como é. Um tempo depois, os de longe e em seguida, um terceiro par com a função de achar os primeiros dois. E assim foi sucessivamente, até estar com tantos óculos que eu corria o risco de não saber para que eles serviam. E eu não sabia mesmo. A confusão era tanta que acabei por ter um troço, um saracotico, uma ziquizira desclassificatória: Sentei numa mesa enquanto arrancava os óculos que estavam na minha cara e os joguei no chão: CHEGA!!! Foi então que o vi. Lá estava o dragão fedorento que vivia me aparecendo em sonhos. Dragão comedor de óculos. Ele estava bem na minha frente, hirto, ereto, esperando que eu me desse conta de sua malcheirosa existência, como se eu precisasse vê-lo pra descobri-lo possível. As narinas dilatadas, os olhos malévolos, a pança de gomos de mexerica e aqueles braços curtos e mal intencionados que só um dragão desavergonhado pode ter. Parecia faminto. Dispunha talheres, ajeitava o prato sobre a mesa, contornava com o indicador na borda de uma taça de vinho. Fazia estes movimentos com uma certa gravidade, assim como quem se prepara para o Ofertório. Estava sorrindo, ou parecia sorrir - seres dentuços são simpáticos. Ele estava mudo, ignorando-me. Até que lhe perguntei o que estava fazendo ali, e ele, de má vontade, me respondeu com aquela voz líquida e estridente: quisesse eu não, ele viera para conversar. Aquilo não ia dar certo, não ia mesmo. Quanto mais nítido ele se tornava, mais eu afundava na cadeira. Sem a menor cerimônia ele procurou alguma coisa no chão, agachou-se pra pegá-la e, quando levantou trazia na mão uma ponta de seta. Fez aquilo descaradamente. Depois, sem mais, deitou a seta com rabo tudo sobre o próprio braço direito amparando-o como a uma criança triste. Foi demais. Justo eu, que tenho verdadeira repulsa por coisas feias e gosmentas, eu, tão bonitinha e delicada, amorosa, dada a rompantes de caridade, tendo de lidar com um sujeito verde e de pele crua como terra devastada. Mas o momento era aquele, visão completa pela cegueira. Hora das possibilidades. - E tudo isso pra falar de sósia hein menina? - ele bafejou. Sou sua figura, seu sósia que está aqui se apresentando. Veja, sou tão parecido que poderia ser você. Assustei-me. Imagine, eu? Que pretensão deste dragão fedorento achar que, mesmo sendo morador de cavernas e guardião de tesouros, tem o direito de chegar na minha mesa e dizer o quanto somos parecidos. Ora vejam. - Vai tomar banho, seu... seu. Eu sou cheirosa, viu? Tenho a pele macia, os dentes não são lá grande coisa, mas, vou ao dentista regularmente, não tenho pança de gomos e estas narinas, bom, as minhas não soltam faíscas. Você, seu VOCÊ só pode ser um destes dragões cansado de tantas noites longas e solitárias. Deve estar à procura de alguma coisa como uma donzela, amável e amorável, frente a um espelho de arabescos. Com certeza esta dona aí, que você procura, estaria pensando num amado, num amigo ou tendo idéias deste tipo de insignificâncias. Mas não eu, eu sou uma coisa graciosa e autônoma. Autônoma. Estou muito bem, não preciso de nada, e muito menos de gente que exige companhia e deixa molhada a pia do meu banheiro. Tá bom que cega, cega a ponto de só enxergar quando disposta a abolir os óculos. Mas isto é apenas um detalhe. - Você é que sabe menina. Posso falar ou não falar. Passa estes óculos pra cá, eles me parecem tão saborosos. - Toma. Entreguei os óculos e já fui levantando. Eu não queria saber. Não iria ouvir um dragão insone e insolente. Mas talvez por ser durante o dia ele falou: - Fique aí, esperando um milagre que lhe poupe a luta de fazer a própria vida. Continue assim, confiando em todos estes caminhos já traçados. Medíocres. Quem ama, e você sabe disto, convive com o insondável, com o medo. O medo desesperado de um dia, perder tudo. Eu não queria saber. NÃO QUERO. Levantei tropeçando no tapete, bati a canela no banquinho e, às apalpadelas saí do quarto, onde estava a penteadeira com seu dourado espelho. |