NA
CALADA DA NOITE
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Mariazinha
Cremasco
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Duas horas da manhã. Não
consigo dormir. Justo hoje que deitei cedo, pois estou tão cansada. Tenho
tantas coisas para fazer amanhã. Desde a meia noite estou na cama. Vou
levantar. Não. Não devo. Se levantar, desperto. Desperto de quê? Ainda
não dormi, nem mesmo cochilei, despertar de quê? "Amargo despertar".
Belo filme. A história de um cara que tinha Mal de Parkinson. Horror,
não quero me lembrar de doenças agora. É nisso que dá ficar acordada.
Fico pensando bobagens. Lembrei do filme e agora estou pensando no meu
tio, que está doente. Xô, pensamento. Pai nosso que está no céu, santificado
seja vosso nome... devia ter comprado o lexotan. Eu prometi que não
tomaria mais. Mas eu deveria ter o bendito guardado para essas ocasiões.
Deveria nada. Se tivesse, não usaria nessas ocasiões. Tomaria todos os
dias, como fiz durante vários anos. Esqueça. Agora não tem mais. Prometeu,
tá prometido. Afinal, o que é deixar um lexotanzinho para quem conseguiu
deixar dalmadorm, dormonid? Vou contar. Mil duzentos e um, mil duzentos
e dois... mas que número grande. Sempre começo depois do mil, pois
se começar do um parece que não dá certo. Mil duzentos e três.
Na hora em que eu começar a embaralhar os números é sinal de que estou
quase dormindo. Mil duzentos e quatro... houve uma época em que
eu contava de cem para baixo. Noventa e nove, noventa e oito, noventa
e sete... mas chegava ao um tão depressa que resolvi contar aumentando.
Tem mais lógica. Amanhã preciso fazer tanta coisa na rua. Ai, que dor
nos braços. Por que será que insônia dá dor nos braços? Se eu estiver
nessa draga amanhã, não conseguirei fazer a metade do que tenho para fazer.
Duas e quarenta e cinco. Se eu estivesse com meus amigos lá onde costumamos
nos encontrar às quartas, nada estaria me doendo e amanheceria bem depressa.
Mas eu nunca posso ficar até tão tarde. Pai nosso... não quero
mais rezar. Não consigo mesmo. O que aconteceria se nessa hora eu pegasse
o carro e saísse? Que vontade de fazer uma loucura. Imagine. Vou lá pra
boca do lixo. Onde é mesmo a boca do lixo de São Paulo? Ainda deve ser
na Major Sertório, na Rua Aurora, esses lados. Chego lá, onde tenha gente
agrupada, provavelmente fumando maconha ou cheirando (às vezes me dá uma
vontade de experimentar), paro o carro. Desço com nariz bem empinado e
grito assim pra quem estiver lá: "ô seus filhos da puta! ô cambada
de marginal!!!". Será que levo um tiro? Sempre tive essa curiosidade.
Será que fariam alguma coisa comigo? Sabe que eu teria coragem? Ou será
que ficariam meus amigos? Mas claro que não vou fazer isso. Que diriam
meus filhos se eu morresse assim? Imagino a manchete no jornaleco: "jovem
senhora de classe média morta a tiros (ou cortada com facas e
canivetes) na boca do lixo de São Paulo". Como
meus meninos explicariam que sua mãe estava num lugar daqueles, àquela
hora? Pobrezinhos. Preciso pensar neles até na hora da loucura. Jamais
iriam pensar "pobre mamãe, estava na contramão da noite".
Chega. Vou levantar. Vou ligar o computador, escrever uma crônica e depois, juro, vou conseguir dormir. É sempre assim. |
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