A
TRAIÇÃO É BRANCA
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Helô
Barros
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A indústria não tem mais o que inventar. Parece inesgotável a quantidade de novos itens de limpeza que chegam às prateleiras dos supermercados. É pra tudo: limpeza de cantos, gorduras, piso, vaso sanitário, roupas, pele, cabelos, vãos. Fico indecisa de tanta variedade. O que me pergunto é; o que é preciso lavar para parecer sempre novo, ou o que para voltar a ser novo é necessário lavar. Lavar carro? Depois do café da manhã de domingo, nada melhor do que esguichar o carro. Ele adora. As portas abertas, o rádio tocando um funk no último volume, a capota coberta de espuma enquanto ele usa uma esponja macia e vai alisando, alisando. Isso é bom para manter a prática. Está vestido à caráter: bermuda cáqui, dorso nu e sandálias havaianas. Bacana mesmo. Depois da limpeza fica num tal de enxuga, torce o pano, assobia, passa o polidor, acende um cigarro e dá uma recuada pra ver o brilho de longe antes de exclamar orgulhoso: Tá novo. Lavar gente? Pode acontecer também, ou ter acontecido com qualquer um, até com o fulano que acabou de lavar o carro. Ah, isso pode. É que gente não é de ferro, e sabe-se lá, vamos supor que por infelicidade o nosso amigo tenha deslizado e caído de cara na lama. Normal. Sabemos que é só dar uma ensaboada e voltar pra casa. Quem sou eu pra falar em escorregões, defender sujos contra limpos ou culpar qualquer um dos dois. Ninguém, não sou ninguém. Mas, que tem um bocado de gente brincando nos baldes e vassouras da vida, lá isso tem. Dá um desamparo sem tamanho só de pensar na dificuldade que é solucionar estes problemas de manchas. O banho quente racionado, a água pela hora da morte. Acredito que nem o rei Salomão iria resolver estas contentas, tanta exceção que a modernidade criou. Mas tenho o direito de contar que o sujeito está lá se esfregando com uma bruaca enquanto a mulher, em casa, cuida daquele bando de moleques que foi ele mesmo quem fez. Não acho justo ela ficar assim, cheirando a vomitado enquanto ele volta pra casa todo cheirosinho na maior cara-lavada. Tenha dó. Desculpem-me, havia prometido não me expor, julgar. É que é demais ver a cena deste desclassificado fazendo a barba com o Gel de Aloe Vera da Gillete, tomando um refrescante banho com Dove, se enxugando com toalhas macias e imaculadas da Buddemeyer enquanto borrifa meia onça de POLO Raph Lauren dentro da cueca. É demais. Até o sorriso que ele dá pro espelho conferindo os dentes, sem marcas, me irrita. Tá, eu sei que esta imagem que descrevi foi pra carregar nas tintas e criar um quadro de sacanagem explicita e não deixar dúvidas que os homens só pensam nisto e que não prestam mesmo. E, as mulheres, também não. É verdade, elas continuam pondo as manguinhas de fora, deixando o apaixonado antigo por um mais moderno, entrando em quartos como belas-da-tarde ou mesmo descolando um bom emprego na base do arroz-com-feijão. Enquanto isso, os supermercados implementam as prateleiras: cândida perfumada, Omo Progress, Omo Multiação; Dove, leite-de-aveia, Pinho-sol limão; Veja limpeza pesada, Veja Multi-uso, detergente com hidratante para as mãos, esfregão com micro esferas; Pato Purific, Varsol sem cheiro, Varsol com cheiro, bom-bril das mil e uma utilidades; shampoo para cabelos tintos, mechados, ressecados; vassouras para persianas, rodo turbo; condicionador com bálsamo e sem; bucha seca e úmida, pano de chão imune a pó; lixa de carbono, escova de dentes com cerdas vibratórias; e... A lista é infindável, deixo o espaço a quem tiver o interesse. Aliás, esta crônica se mostrou sem razão. Deixei uma lista de supermercado inconclusa e perguntas por responder. Ouso por uma questão de ordem e limpeza tentar agora. O que é preciso lavar para parecer sempre novo, ou o que para voltar a ser novo é necessário lavar? A solidão. |
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