Tema 021 - QUASE
BIOGRAFIA
QUASE...
Helô Barros

Tudo é por um triz. Quase caiu, quase bateu, quase andou, quase pegou, quase...a hora do ritual. Se está a um passo além do que um dia foi seguro, o momento de ficar ereto. Deixar de ser bicho para ser homem. O que eu corto? O medo.  

O que é mesmo que eu corto?  

Eu não devia ter mais do que 11 meses. Setembro. Minha mãe tirou meus sapatos, segurou-me pela cintura, vovó espalhou sobre o mármore uma boa porção de fubá e aplainou com as mãos enquanto o meu pé foi colocado sobre o pó amarelo. A marca ficou lá.  

Vovó segurava uma faca de cabo de madeira. Com ela nas mãos perguntou:  

- O que eu corto?  

- O medo, minha mãe respondeu.  

E a faca passou no desenho formando uma linha que deixou visível o mármore cinza.  

- O que é mesmo que eu corto?  

- O medo, minha mãe confirmou.  

E as linhas se cruzaram no fubá.  

O resto eu soube mais tarde. É quando a criança está quase pronta, no momento que já consegue soltar a mão, dar dois passos e cair de boca, soltar uma coisa e agarrar outra logo em seguida. Esses momentos exigem atenção redobrada, fase perigosa. Tudo é por um triz. Quase caiu, quase bateu, quase andou, quase pegou, quase...a hora do ritual. Se está a um passo além do que um dia foi seguro, o momento de ficar ereto. Deixar de ser bicho para ser homem.  

O medo toma forma, tem cor. Amarela. A marca no fubá vai ser desfeita por uma vassoura, o temor levado até à rua, incorporado pelo movimento. O acaso vai tomar conta. Depois disso é uma questão de horas, no máximo um dia para a criança estar correndo pelo gramado, as pernas firmes e flexíveis, como se desconhecesse o fato de até há pouco estar engatinhando. Poderia dizer que é uma benção, uma confirmação da potencialidade, um batismo do caminhar que se inicia a partir da marca, da cor amarela, do milho que alimenta, das entradas e das saídas, do limiar, da vassoura, da faca amolada , da avó, da mãe, da cruz que direciona e corta a insegurança e a dor do desconhecido.  

No último super mercado, comprei um pacote de fubá. Estou chegando no quase, e este momento é perigoso. Estou frente a um reino de possibilidades: posso bater a boca, dizer um sim inadequado, ralar os joelhos, comprar um vestido que nunca irei usar, bater na quina do móvel da cozinha ou me render ao desejo de escrever uma crônica que poderá se chamar Quase...

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