Tema 020 - AMORES ILÍCITOS
BIOGRAFIA
A QUE FOI (SEM NUNCA TER IDO)
Mariazinha Cremasco

Naquele dia Rosa acordou desanimada. Dificilmente sentia-se assim. Era alegre, extrovertida, cheia de vida. Nunca reclamava de nada. Quase nada a abatia.

Sentou-se. Cotovelos na mesa, apoiou a cabeça entre as mãos, respirando fundo. Seus olhos passeavam devagar pela cozinha pequena. Como era velha aquela casa. Os batentes da porta encardidos. A pia pequena, lotada de louça suja do jantar. Panelas destampadas. Como eram desorganizados e relaxados seus filhos. Com muito esforço, levantou-se da mesa, procurou uma caneca sob a montanha de pratos. Colocou água no fogo. "Talvez um café me ajude". Sentia os chinelos surrados grudando no piso vermelho. Enquanto preparava o café pensava que os filhos deviam ter ido dormir muito tarde, tamanha era a desordem. Ela não ouvira nada. Dormia como uma pedra. Era sempre assim. Ainda bem que dormia pesado. O bairro era barulhento e a janela de seu quarto dava diretamente para a rua. Imagine se não dormisse bem. Estaria perdida. Trabalhava o dia todo em casa. Para quê? Não ganhava quase nada. Vendia salgadinhos para o bar do Seu Manoel. Mas o maldito português era duro de pagar. Precisava gastar muita saliva para receber de vez em quando.

Fazia também docinhos e bolos para fora. Mas sabe como é... bairro pobre, cobrava pouco. De algumas nem cobrava. Eram vizinhas, amigas. Levavam os ingredientes, ficavam enfiadas em sua casa e Rosa fazia. Tinha talento, a mulher.

Geraldo, o marido, era caminhoneiro. Só trabalhava quando solicitado. E as viagens estavam cada vez mais espaçadas. Geraldo era devagar, tranqüilo, sossegado... Para falar a verdade, ela também era. Não se preocupava com quase nada. Deixava tudo por conta de Deus e do destino, ainda mais agora que estava descobrindo os livros de auto-ajuda e esoterismo. Pensou que os filhos não tinham puxado a ela. Detestavam ler. Ela lia muito, gabava-se de ter lido todos (ou quase todos) os livros de Sidney Sheldon, Harold Robbins, Cassandra Rios, Adelaide Carraro e até alguns de Jorge Amado. Lera até "Quarto de Despejo", de Maria Carolina de Jesus, uma catadora de papéis. Chorou muito quando leu este livro. Era uma espécie de diário. Que vida sofrida teve aquela mulher. Quando se lembrava, percebia que não podia se queixar. Não que costumasse reclamar. Hoje é que estava assim, estranha, triste.

Tomou o café, fumou um cigarro e enfrentou a cozinha. Jogou todos as sobras de comida fora (que desperdício), afinal as panelas estavam abertas, sabe-se lá que bichos poderiam ter passado por ali.

Cozinha limpa, pegou a roupa suja espalhada no banheiro, entrou no quarto onde dormiam os filhos, recolheu mais roupa suja no escuro mesmo e as enfiou de qualquer maneira na máquina. Dane-se! Quem mandou deixar tudo espalhado? Que manchem!

Nesse dia, resolveu dar um basta. Decidiu que iria trabalhar fora. Metida como estava com auto-ajuda, mentalizou com toda sua força um emprego. Abriu a porta da frente e viu o entregador da Gazeta do bairro. Pegou o jornal. Sentou-se na sala desarrumada e começou a ler os classificados. "Precisa-se de auxiliar de escritório". Rosa sorriu. Sabia que era para ela aquele emprego. Uma pequena metalúrgica no bairro. Candidatou-se e conseguiu a vaga. O salário era pequeno, mas melhor que nada. O marido não quis, esperneou, brigou e até chorou, mas ela foi mesmo assim. E gostou, se deu bem. Pelo menos o dinheirinho no final do mês era certo.

Foi lá que Rosa conheceu Vitório, um vendedor que visitava a empresa todas as quintas-feiras. Vitório não tinha muitos atrativos físicos, mas era gentil, educado, atencioso, bom papo. E Rosa foi se envolvendo. Ele a elogiava. Ela gostava daquilo e esperava com desespero pelas quintas-feiras.

Um dia, numa viagem de Geraldo, foram tomar um chopinho. Absolutamente tímidos, nada aconteceu. Apenas um breve beijinho de despedida. O suficiente para Rosa quase morrer de remorso e, ao mesmo tempo, de excitação.

Esse fato só aguçou o desejo dos dois e, algumas semanas depois não se contiveram e aconteceu o inevitável. Foram a um motel. Rosa desesperou-se no caminho. E se alguém a visse? Uma vez ultrapassada a porta de entrada, resolveu que se soltaria. Liberaria. Afinal, não era mais uma garotinha. Sabia o que queria. Precisava saber como era ter outro homem. Ofereceu-se languidamente.

Vitório, no entanto, revelou-se um perfeito imbecil. Ficou nu, só de meias pretas. Cheirava a mofo, o infeliz. E o beijo? Beijo babado, boca mole, um horror. E gabava-se, achando-se o máximo - segurança essa talvez decorrente do fato de possuir um membro de proporções respeitáveis. Isso sem contar que o hálito do homem indicava que o almoço havia sido regado a muito azeite e alho.

Rosa sentiu um zumbido nos ouvidos. O que esperava há tanto acabou se transformando num pesadelo, uma tortura. Simulou uma crise de arrependimento e exigiu que saíssem dali. Vitório, assustado, obedeceu. Vestiu-se desajeitadamente e saíram. Foram do motel ao ponto de ônibus onde ela a deixaria em silêncio. Rosa saltou do carro e bateu a porta sem uma palavra de despedida. Seu breve caso extra-conjugal estava acabado antes mesmo de ter se consumado.

Ela continuou trabalhando na metalúrgica por mais dois anos. Vitório continuava a ir todas as quintas-feiras ao escritório, mas quase não se olhavam.

Em casa, as coisas seguiam como sempre. Seu marido caminhoneiro, o bronco, que não lia e não se informava, que comia com a colher e falava errado, era maravilhoso. Fazia amor divinamente, do jeito que Rosa gostava. Puxava os cabelos, jogava na parede, chamava de lagartixa. Ele era o seu amor, o seu lícito amor.

E como era gostoso o seu beijo.

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