EM
PASÁRGADA, EU SOU AMIGA DO REI
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Helô
Barros
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Deixo a vocês o bom senso de tapar o sol com a peneira, colocar panos quentes. Dá pra tirar esta chanca do meio do caminho? Vou ter um saracutico, ah vou, que se danem, terei crise histérica sim. Eu não sei, mas esse negócio de ser mãe por tempo indeterminado dá curto circuito neste maldito pisca-alerta que vocês, vocês fazem questão de manter ligado, fica assim: tec filhos, tec filhos, tec filhos, tec filhos, como torneira pingando, uma luz e som intermitentes. É de endoidar. - Calma, mãiê! Tá. Prometo falar pausadamente. Tec, filhos, tec, tec, filhos, filhos, te, fi, tecfilhosplá. Por que não me foi dado o direito de enxergar as coisas devagarinho? Sabe quando elas estão lá há muito tempo e chega uma hora que, como um raio, a gente enxerga tudo de uma vez? Não dá mais, vou sair, estou saindo, sabem por que? por que vocês estão esquecendo de me dar o pagamento, seja ele qual for, não é possível viver nesta inanição. Não vou continuar sendo só sorrisos porque num belo dia de maio um de vocês teve a bondade de regar as plantas do quintal, ou, na semana passada, me fizeram o favor de trazer o supermercado. Eu quero sair daqui, não tenho pra onde ir, vou ao cinema, ficar lá duas horas inteirinhas, fingindo que adorei, vou chegar em casa contando da coerência do enredo, da interpretação maravilhosa do artista, veja, sou independente o suficiente pra ir ao cinema. Sabe o que farei? comprar a comida que eu gosto, tomar a minha água de coco que estará na geladeira, sem precisar que eu avise que aquilo é meu e não é pra tomar, vou deixar de me sentir responsável se alguém muda, se querem viajar, se têm dinheiro, se um saiu do emprego, se entrou de novo da faculdade, se a namorada não foi com a minha cara, se não dei a resposta certa, se têm seguro-saúde, se precisam de um fiador, se sabem o dia que devem pagar a prestação do aparelho de som. Em Pasárgada não tem telefone de ficar esperando, nem relógio. Lá não preciso olhar horas tardias e muito menos a cama de quem ainda não chegou. Sabe o que mais? não vou precisar bater três vezes em porta de quarto, ficar do lado de fora como um cão faminto, aguardando a hora aprazível de almoçar. De lá de dentro, depois de um longo tempo, alguém murmura entre dentes, qui é? (Como se não soubessem). E quando eu fechar a minha porta, ninguém irromper, como se ali fosse a cozinha ou a dispensa, e se eu reclamar da intromissão, não ouvir que devo dar um jeito no meu mau humor. Não vou permitir aquele olhar de: vamos fazer logo o que esta coitada quer, pra evitar que ela fale como uma matraca. Em Pasárgada vou ter um jornal só pra mim, não terei recado pra esquecer ou lembrar, não levarei bronca por ter dado o telefone de casa pra pizzaria da esquina. Vão ver, ah, vocês vão ver! até pra brigar precisam de mim, precisam? pra fazer a parte difícil pelo menos, ser o bode expiatório, contar mentira, deixam de fazer as coisas só pra me dar o trabalho de cobrar. Se acordo mais cedo, não tenho banheiro; se espero, encontro tudo molhado e fora do lugar, se quero ler a Folha encontro os encartes virados; o Estado é o mandachuva que assina, ah se eu ousar abrir ou tirar do lugar, também, é ele quem paga a assinatura. Eu pago trin-ta-re-ais-por-mês, mãe. Se pagar por algo me desse algum direito, se sustentar algo me trouxesse algum benefício. Sabe o que é? decido o jantar só pra que alguém reclame da merda do menu, esquecerem de avisar que não virão ou ouvir: -todo o dia a mesma coisa, mãe. Eu vou pedir a exoneração, a dispensa, preciso do meu espaço, de uma pia seca, de um jornal ainda no plástico, de música popular brasileira. Feira? Só se for para comprar flores. Vou me embora pra Pasárgada, lá, eu sou amiga do Rei. Deixo sobre a mesa, o pisca-alerta. Não percam tempo, desliguem-no logo, por favor. |
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