PROVA
DOS NOVE
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Reinaldo
de Morais Filho
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- Feijão? - Não - Arroz? - Pois. - Bife? - Sou vegetariana. - Batata frita? - Estou de dieta. Tive que descer para buscar um suco de Tâmaras, nem sei do que se trata. Uma bebida negra, de tonalidade suja, de textura densa. E nem por delicadeza ela iria comer qualquer dos meus pratos. Ainda hoje, no entanto, desconfio que estava faltando um pedaço de bife da panela. Pena que, àquela altura, ainda não ousara beijar sua boca, ou teria futucado com a língua entre seus dentes. Perdi a fome, belisquei as batatas e arrumei tudo na geladeira. Ao menos não ficaria com o estômago dilatado, evitando os dedos de Raquel em minha barriga. Em meus pensamentos eles já haviam dominado o corpo em fervura que eu carregava. Voltei para o quarto, lacrei as cortinas, preparei o cinema. Ar condicionado, pipoca e refrigerante. E uma cama confortável de colchão d'água, um cobertor macio, a escuridão. Desculpa perfeita para levá-la à alcova. Raquel teimou em dormir na sala na noite anterior, no sofá pequeno. As pernas caíram sobre um braço do móvel, a cabeça, sobre o outro; eu fiquei de joelhos olhando as frestas da porta entreaberta, perdido no corpo perfeito transpirando sutilmente a poucos metros. Mas, agora ela estava sob meus lençóis. E aceitou sem qualquer luta o cafuné que ofereci em sua cabeça, a saia curta que cedi para que pudesse despir-se da roupa que vestira no dia passado, e se sentir mais confortável, mais limpa após o banho. Os cabelos ainda estavam úmidos. Rocei o braço em suas pernas para ir se acostumando com o toque. Repreendeu-me: "O filme já vai começar". Que filme? Tive que me afastar, dar um passo para trás a fim de avançar dois pra a frente. Uma guerra, uma luta. Beijei sua boca. Assim, do nada. Antes do filme começar, antes que ela pudesse imaginar meu desejo, antes que nem o toque célere dos nossos lábios, o gozo efêmero do meu corpo, pudessem existir. Beijei, sim; enfim senti seu gosto. Pude provar o sabor dos seus lábios cortados. E tive que provar da sua ira, o gosto acre do tapa no rosto. A mão pesada contrariando a imagem de delicadeza suprema que se fazia em minha mente; ruborizei de vergonha, de decepção, de dor, de prazer. Prazer porque Raquel, mesmo zangada, possessa, nervosa, não levantou-se do colchão. Recostou-se no canto oposto da cama e chorou com as mãos cobrindo-lhe as lágrimas; não pude evitar olhar para sua calcinha. Ela estava sentada com as pernas cruzadas, a calcinha clara à mostra; as vestes da noite anterior, com o puro sabor de seu sexo. - Não sou lésbica. - Sei, é vegetariana. - E você? - O quê? - É Homo? - Não. - É doida? - Todos somos. - Que brincar, somente? - Não, o desejo é real. - Então é gay. - Não. - Bi? - Porra, pra que dar nome? - Você tem que ser alguma coisa. E voltou a pôr as mãos na face avermelhada, mais com vergonha do que por desespero. Não vergonha das lágrimas, que àquele instante já eram raras; temia e escondia sua curiosidade, talvez o desejo. Uma vontade nova, enigmática e intensa; nem pôde controlar por muito tempo: beijou-me. Um beijo de língua. Raquel não era um primor de beijoqueira, é verdade; provavelmente por ter um comportamento sempre submisso, deixava a cargo do homem o dever de levar seus movimentos. Mas eu não sou homem, isso posso afirmar. Dei-lhe um tempo, para que fosse se apercebendo da igualdade em que nos encontrávamos. E desci por seu corpo. Edito os detalhes, suprimo os toques, as carícias; basta dizer que foi perfeito. O filme acabou, rebobinou e acabou de novo umas três vezes. Caímos na cama, com um sorriso de felicidade e extremo prazer na boca, com a fome cutucando a barriga: quase meia-noite. - E o João? - Que tem o João? - Seu namorado. - E? - É só fachada? - Não, gosto dele. - E eu? - Você quer namorar comigo? - Não, já namoro o Pedro. - Não gosta de mim? - Gosto, mas é tudo novo. - Pra mim também. - É sua primeira vez? - É. - ... - Que foi? - Nada. - Já tinha feito antes? - Uma vez, há uns dois anos, só uma pituca. - Com quem? - Deixa pra lá... - Não! Fala! - Ana. - Aquela sapata?! - Ela ainda não havia assumido. - Eca! - Me dá um beijo. - Eu não! Eca! Blargh! - Há-há-há E fizemos sexo por mais uma hora antes de comer alguma coisa na cozinha. Raquel devorou o bife, o arroz, o feijão, as batatas. Eu devorei seu corpo enquanto isso, e engoli a seco os seus fingimentos: dieta, vegetariana, homofobia. - Você é homo? - Não. - E eu? - Sei lá, é? - Não, gosto de homem. - Goza com homem? - Com o João, sempre. - O Pedro também é maravilhoso. - ... - Vamos fazer um swing. - Vai te fuder, sou possessiva. - Calma, tô brincando, também sou ciumenta. - ... - Seremos amantes? - Não. - Amigas depois disso? - Quanta pergunta, vamos pra cama. - Você é insaciável. - Você gosta. - Verdade. - Você é gay? - Não. - É bi? - Que saco. - Assuma. - Você é? - Bi. - Eu não. - E que porra é essa? - Sei lá, eu gosto de você. - Mas não como amiga. - Também, mas gosto de te ver gozar, eu gozo. - Então você é bi. - Não, não gosto de mulher, só de você. - Que lindo Você me ama? - ... - Você me odeia? - ... - Porra, que indefinição do cacete, você não tem sentimentos, não? - Tenho. - Então diga logo, você é homo ou bi? - Nem isso, nem aquilo. Vá embora. E nunca mais transei com mulher nenhuma... |
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