A
CURA
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Reinaldo
de Morais Filho
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Roía as unhas a cada minuto que passava sem que P. aparecesse. Sentia o gosto da traição na gota do suor que nascia na minha testa e escorria entre meus lábios secos. Meu lábios secos que tremiam: de ódio e de medo. Odiava P. desde o momento em que pude ver o beijo na boca daquele maldito atendente do McDonald's. Adorável Bovè: que pusesse fogo em todas lanchonetes. Um reles atendente de uma loja de fast food. Na verdade, pude ver, no instante em que ela apertou suas nádegas, que o garoto era apenas uma comidinha rápida. Para ser sincero, por pouco não achei justo P. ter esse prazer, por ter pago o preço de se casar com um acomodado obeso como eu. A barriga cresceu na mesma proporção que o sexo diminuiu; e ela continua com aquele abdômen dividido, os seios fartos, a bunda durinha. Provavelmente com a mesma sede hedonista. Temo por mim. Como disse antes, por pouco não aceitei a traição, e ainda agora peso as possibilidades. P. não me deixaria jamais, eu sou seu porto-seguro, o equilíbrio da sua vida, o amigo fiel. Eu sou quem a sustenta, vamos dizer cruamente. Porém, um dia não mais suportarei tamanha humilhação. O garoto com que se diverte naquele motel de segunda categoria, não é o primeiro, tampouco será o último. Ai, quase posso ouvir a cama velha rangendo. E um dia eu serei obrigado a pedir o divórcio: as pessoas podem comentar, minha reputação pode ser ameaçada. Que humilhação. Sentado em um canto escuro, no estacionamento de um posto para poder observar o carro dela ao sair. Pensei em flagrá-los quando parei aqui, mas já agora esta pretensão se esvaiu. Estou olhando os bombeiros do posto apontando para meu carro, rindo, fazendo piadas: talvez seja constante ver maridos traídos vigiando aquele motel. Caiu uma lágrima de meu olho. As lágrimas sempre caem, hoje nem mais me importo com elas, acostumado. Eles vêm saindo, o carro descendo devagar, não sei por que ainda choro, a camisa já está molhada. De longe pude ver o sorriso na face de P. O sexo traz uma alegria incomensurável, lembro-me vagamente disto. Quero ver com que olhar ela vai me encarar quando chegar em casa, já estou na sala, ouvindo Chet Baker, tomando meu Jack Daniels, pronto para espancá-la. Não, nunca seria capaz. Este maldito espírito bondoso, tolerante, transigente. Aceito todas as desculpas, valorizo as qualidades, escondo-me os defeitos. Gostaria, tão-somente de tirar-lhe este sorriso incontrolável, irradiante com que chegou, deu-me um beijo no rosto e subiu para o quarto. Quase fiquei contente. Não fosse o perfume masculino barato que ainda impregnava seu pescoço, todo seu corpo. Tomei outra dose e estou subindo. Acabei ficando excitado com toda situação. P. estava em frente ao espelho, admirando suas curvas enquanto enxugava a orelha. Que orelha perfeita. Tirei minha roupa e deitei na cama. Ela olhou de soslaio, fez que não viu, disfarçou não entender meu chamado. Resmungou, alegou uma dor de cabeça. Insisti, pedi que me fizesse sexo oral, somente. Implorei, quase obriguei; acabou aceitando. Senti em seus olhos uma certa humilhação, ojeriza pelo que estava fazendo: sem poder negar, com pena e medo, mas sem nenhuma vontade. Sentia-se, provavelmente, uma meretriz: obrigada a dar prazer ao homem que pagava suas contas. Senti nos meus uma certa satisfação. Efêmera. Após a relação, corri até o depósito, enquanto P. voltava ao banheiro. Procurei em minhas caixas de ferramentas algo que pudesse satisfazer meu desejo, algo que pudesse me causar uma dor tão profunda que me fizesse esquecer a noite de hoje, os últimos dias. Um martelo, uma chave de fenda, um alicate. Ah, o alicate que tão bem sabia manusear. Não era a primeira vez, tampouco seria a última. Desde jovem o uso para resolver minhas crises, apertando um dos dedos, com força suficiente para quase quebrá-lo. Desta vez apertei até ouvir o estalo, quebrei o dedo mínimo, quase o pus fora da mão. Segurei o grito, para poder me alimentar do choro seco que descia as escadas, das lágrimas sofridas que desciam pelo rosto de P. e chocavam-se com o esperma em sua boca suja. Comecei a apertar um outro dedo. Só mais um, deixarei outros para os dias seguintes. Bendito alicate. |
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