FIM
DE FEIRA
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Reinaldo
de Morais Filho
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Acordei de ressaca no meio de um rebuliço. O chão estava sujo, um caldo negro escorrendo restos de vegetais, gordura da carne, tomates podres, o cachorro lambendo minha boca. Eu fedia a cachaça, mas não lembrava de nada. Tentei erguer a cabeça e percebi a bebedeira da noite anterior. Não imaginava como parei ali, embaixo de uma barraca de queijos, aquele homem barbudo me dizendo para ficar parado, não me levantar. "Vai afastar meus clientes, seu imundo!" 'Que intimidade, nem o conheço.' O corpo doía em todas as dobras, em qualquer junta, obedeci; continuei deitado no canto, imóvel, cada vez mais curioso. O que estava acontecendo?, onde estariam meus amigos?, quem me largou aqui? O dia estava claro, com um sol forte que, nos poucos raios que me alcançavam, queimavam minha pele. Minha pele estava repleta de pêlos, suava como se fora um porco, respirava como um cão, temia o dono da venda como se fora um rato. E não pude me recordar de nada, da noite anterior, nem de qualquer outra noite. Nem mesmo de um dia longe dali. Olhei para os lados e reconheci aquele lugar como se estivesse lá por toda minha vida, nada além da feira. Mas em algum lugar no fundo da minha consciência sabia que eu tinha amigos, que tinha vida, que havia lido Machado de Assis. Não entendia o medo que sentia em revidar os chutes que ia levando do vendedor de queijos, nem sabia porque estava apanhando. Revidei. O homem era um senhor de barba espessa e negra, de rugas antigas, de pele bronzeada. Lembrava um velho marinheiro que volta do mar sem os peixes que saiu para buscar. Um ar enlevado, concentrado na decepção, o ódio escorrendo pelas narinas peludas. E foi somente um leve chute na altura da canela, mais um pedido de paz do que uma resposta de guerra. Ele não entendeu, cuspiu em minha cara, arrancou-me pelo pescoço, chutou minha bunda. Pediu ajuda e os amigos das barracas vizinhas continuaram o espancamento. Fui atirado no meio da rua. A dor da ressaca agora tinha companhia. Hematomas denunciavam novas dores. Bati a cabeça quando caí, um galo cresceu em minha testa, um mendigo sujo, de vestes rasgadas ria do outro lado, outros olhavam com certa piedade. Senti um gosto de sangue, meu lábio estava cortado, ardia meu peito como se batesse com dificuldade, senti fome. Caminhei com dificuldade até a porta de um bar na esquina, as pessoas me encaravam com um olhar estranho, misto de terror, pena e nojo. Eu tinha nojo de mim, pena; temia por não saber o que estava ocorrendo. Quando bati a cabeça pude lembrar de alguns amigos, todos muito antigos. Lembrei de ter lido realmente Dom Casmurro, mas há muito tempo atrás, marcando todo o texto, irritado com o vocabulário inadequado para alguém da minha idade. Ainda era adolescente. Nenhuma recordação recente. 'E hoje tenho barba.' Procurei um espelho na parede do boteco. Assustei-me: lembrei de Kafka, Metamorfose. Não que eu fosse uma barata, embora estivesse da mesma forma imundo. Minhas roupas estavam corroídas, os dentes enegrecidos, os ossos sobressaindo em um corpo magro. Olhei novamente, beliscando o braço para crer. E nem percebi o dono da loja, um sujeito gordo e estúpido chutando-me para longe dali, como se fora eu mosca. Pensei em reivindicar meu direito de ir e vir, em alegar preconceito, em invocar os direitos humanos. Corri quando vi os músculos arredios me ameaçando. Corri até a outra esquina, onde havia um beco menos movimentado. Um canto sujo que era usado como banheiro, motel e descanso naquele submundo em que acordei. Deveria estar em um sonho: tomei um chá, encolhi e fui parar nesse esgoto. Um mendigo chegou perto de mim enquanto eu me recompunha. Achei suas feições familiares, como se o conhecesse, talvez o conhecia. Afinal de contas era uma feira, um outro dia meus pais devem ter me obrigado a ir ali comprar um queijo, um peixe, frutas. Detesto feira, um atraso quando se tem shopping center, supermercados bem asseados, ambientes limpos. Estranhas imagens cercaram minha mente. Sentia-me cansado por não me vir à cabeça recordações fundamentais sobre mim. Onde estariam meus pais? Quem são meus pais? Onde moro? Olhei mais uma vez o maltrapilho em minha frente. Ele ainda estava parado, encarando-me com dó. Pelo que pude perceber diante do espelho, minha aparência não estava distinta da sua, os pontos de lodo preto em cada dobra mais aparente, feridas corroendo a pele fraca, a barba, o cheiro de vômito e cachaça misturando-se. Olhava-me curioso, como se percebesse em mim um ar diferente. Murmurou alguma coisa, em um dialeto quase alienígena, mal pude compreender. Perguntou onde estive. 'Ousadia, como se devesse satisfações a você.' Espantou-se com minha grosseria, com meu repúdio, com o desprezo. Encarou-me e foi se aproximando. Não pude reagir. Tive medo, mas, como disse, reconheci traços familiares em seu rosto, em seu jeito; sentia-me, de certa forma, protegido. Até mesmo quando ele segurou em minha cabeça, envolveu-a em seu peito e abraçou-me com força. Uma lágrima pesada caiu em meus cabelos, ouvi um choro seco, célere e forte sair de seu coração. Em seguida, afastou-se com receio, fitou-me em tom de despedida, acenou com a mão esquerda. "Você está de volta." Correu dali com as lágrimas marcando o chão. Não pude entender assim tão de repente. Prostrei-me naquele canto por alguns minutos esclarecedores, enquanto imagens dispersas iam inundando minha memória. Ouvi o barulho da feira diminuindo, as pessoas rareando, as sobras se acumulando. Cheguei até a calçada, na entrada daquele beco escuro, e deixei-me observar os vendedores arrumando suas barracas. Cachorros e mendigos disputavam, segundo as regras dos primeiros, qualquer coisa que se parecesse com comida. Lembrei de uma imagem de Eça de Queirós, da disputa pelo osso por dois animais famintos. E comecei a lembrar de muitas outras coisas. De como eu me tornei um mendigo, de como aquele amigo que me abraçou no beco suportou minha demência, de como sobrevivi ao abandono da família. Eu estava de volta à vida consciente, embora não soubesse o que isso significava, para que servia. Ainda agora há lacunas em minha história. Cheguei neste mundo quando ainda estava entrando na Faculdade, com a cara limpa, as rugas distantes; e hoje vejo sinais de envelhecimento, sou adulto, quase trinta anos. Preferi continuar ali por uns momentos, estou aqui há três dias desde o 'tombo'. O sol vem caindo de novo, recomeça a desarrumação das barracas. O fim da feira que se repete, o dia que acaba da mesma forma, com uns rindo, outros contando o prejuízo. Uns que nascem, outros que vêm o fim de tudo. E o boteco da esquina repleto de bêbados: como é fácil esconder-se da vida. Já é hora de desarmar a barraca, procurar um outro canto, tentar recomeçar em um lugar distinto, retomar, talvez, os rumos da vida que me fora introduzida e com a qual deslumbro meu futuro. Ando a passos lentos, em direção ao centro. Quase cai uma lágrima. Uma feira que me foi uma moradia, que talvez tenha agravado minha loucura, mas que provavelmente trouxe, também, a cura. Vai fechando o dia, quase nenhuma venda ainda está de pé, o largo está plano, pronto para servir de dormitório para os pobres que sobraram, para os loucos que vão tomar meu lugar. Quase cai uma lágrima. Que eu seguro para que não pareça saudade, para usá-la em uma outra história, pois ainda tenho que levar nas costas o peso da feira que acabou, ter forças para montar uma outra barraca amanhã. A vida é como uma feira, em que se deve mensurar o uso da energia, para que se possa estar sempre montando a barraca, pois em um dia de graças, ou em um dia de decepções, ainda não se tem o fim. |
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