Eu me lembro que o mundo, antigamente, era mágico. Haviam monstros, pessoas más, fadas, duendes, Papai Noel e um Coelhinho da Páscoa.

Hoje já não é mais assim. Tudo se reduziu, se racionalizou. A vida hoje segue outras regras. Nada mais acontece sem que se saiba as causas e as conseqüências. Há coisas boas e coisas más, como antes, mas não há mais surpresas. As surpresas de hoje, quando acontecem, estavam calculadas. Há uma probabilidade e uma apólice que te protege no caso de a probabilidade se materializar.

Antigamente, antes de eles racionalizarem o mundo, as surpresas sempre me pegavam de surpresa. Como naquela vez que a gente roubou pitanga do vizinho, ele nos viu e veio atrás, pronto para nos mandar chumbo. Quando o Clóvis falou: "Lá vem ele de espingarda e tudo" eu nem olhei para trás para ver se era verdade. Corri até o pátio da nossa casa e me escondi embaixo da escada. Era o Clóvis que me atualizava da situação: "Ele entrou no nosso pátio", "Ta olhando pra cá", "Vem chegando perto". E eu ali, rezando, pedindo para o Papai do Céu que fizesse ele ir embora, que eu nunca mais roubaria fruta. Foi a minha reza que fez ele ir embora sem nos descobrir e sem deixar rastro, sem nem mesmo me denunciar para o meu pai.

Se fosse hoje não teria espingarda, não teria esconderijo debaixo da escada, não teria Papai do Céu. O advogado dele falaria com o meu e o juiz daria uma sentença, provavelmente uma multa.

O mundo secou. Morreram todos os personagens míticos que me faziam companhia e hoje eu me sinto muito só.