Tema 200 - 1956
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A CASA DO SOL POENTE
Eduardo Prearo

Ainda estou perdido mas não sei sob que ponto de vista, se sob o meu mesmo ou de sicrano ou beltrano. Tentei escrever ontem à noite, mas agora me sinto meio incapaz pra qualquer coisa, o que não me deixa feliz. Cheguei à conclusão de que estou um tanto ou quanto longe de acertar nas palavras, por exemplo. Acabo de vir de uma festa, e me arrependi de ter ido talvez porque era melhor ter voltado pra unidade para chorar por causa da imensa capacidade alheia que percebo a todo instante; me sinto pequenino diante dela. Preciso ler mais, e seria talvez bom conhecer gente que visse alguma graça em mim. Mas agora nada flui, e furacão é vírus que não pego. Quero escrever uma peça teatral. A cueca está molhada; mijei nas calças enquanto andava, e os sapatos ficaram por uns segundos brilhantes, pareceram-me polidos. Mas depois o ar secou-os rapidamente. Ninguém me percebe mais a não ser como um senhor. Por vezes sinto que vou envelhecendo como envelhecem os afeminados, sem dignidade, cada vez mais repugnante. Na semana passada, quando resolvi falar para alguém o que estava pensando, ouvi críticas um pouco duras; essa pessoa disse-me que sou muito negativo e que isso era impressionante para ela. Não liguei a princípio, mas depois fiquei remoendo a crítica. Será que algum dia eu impressionei alguém pela minha inteligência?, pensei. Agora que não tenho mais pretensão de ser escritor, pois estou tomando consciência do quanto escrevo mal e escrever estas cartas me deixa satisfeito. Não, não penso mais em escrever uma autobiografia, muito menos uma crítica social camuflada de romance. Agora sei que sou pouco crítico, que sou mais insano do que crítico, já que não tenho razão reconhecida. Hoje, no pequeno passeio que dei durante o intervalo do que arrisco chamar de trabalho, haja vista que o trabalho alheio parece ser mais trabalho, estava um deserto. A garoa não me fez bem. Talvez o que tenha me feito bem foi ter me deparado com um poster de um elefante colado no vidro de uma loja de perfumes. Por que rio agora, por quê? Estou comendo doces demais e a barriga tem crescido; os oblíquos são almofadas e por vezes penso em fazer ginástica. Mesmo no recente período de fome os oblíquos me diziam que era manha a tontura e o desespero. Eu não devia estar rindo agora; só os previdentes podem rir o quanto quiserem. É melhor parar de escrever. Há um paralelo entre Lua e Netuno mas eu não sabia o significado disso até agora; acabei comprando uma lata de sorvete, gastando tudo antes de saber que se deve reprimir os impulsos quando há esse aspecto. Pude observar que os impulsos estavam meio sem controle pela minha forma de pegar o sorvete com a colher: peguei a primeira bola com a mesma colher que devorei o sorvete, lavei a colher, peguei a segunda bola, lavei a colher, peguei a terceira e assim por diante. Que vergonha! Um coitado. Foi isso o que disse o caixa do mercado: um coitado. Claro que ele teve suas razões, mas essa história é tão verídica (afinal, não sou escritor) que não vou dizer o porquê. Agora sinto a barriga maior. E também os oblíquos que se eu apalpá-los com um dedo notarei que se tratam de almofadas macias. Quanta culpa ainda terei por isso e por outras coisas mais como por exemplo a de não estar dormindo, mas escrevendo, o que talvez seja incorreto porque não ganho nada com isso. Ainda posso deixar de pecar esta noite. Seria isso um impulso, esse pecado? Não, talvez não. Talvez fosse um descarrego ou algo parecido, uma sem-vergonhice, digamos, para muitos. Ademais, impulso não é vício. Não penso, e nunca estive nem aí para o que outros estavam pensando a meu respeito. Já estou velho, falei isso pra Amanda, que já estou velho. E ainda penso em arrumar um emprego onde ganhe um bom dinheiro, mais de cinco mil mensais. Amanda disse que preciso ser mais gentil, e um homem também me disse isso nesta mesma semana. "Você quer que eu trate os outros como bebês?", indaguei a ela. Eu fui à festa mal-vestido, e lembro que Amanda me disse que o vinho tinto talvez estivesse melhor que o vinho que ela estava tomando, um branco seco. Não tenho conseguido escrever mais nada, nada que preste. Se eu abrisse um parágrafo aqui ou ali...não sei. Mas não me importo mais com isso. Depois desta noite ser canonizado tornou-se algo impossível. Tenho muito o que aprender como ser humano. Faz frio aqui em New Orleans. Desejo-lhe um feliz 1957. É claro que no ano que vem talvez eu não esteja mais sozinho; dizem que tem gente interessada em mim, e a senhora bem sabe que não tenho defesas para as pessoas invasivas, nem dinheiro. Agradeço-lhe muito a quantia enviada, mesmo achando que os poemas que lhe enviei são apenas poemas e não poesias. Posso imaginá-la assistindo ao seu futebol, comendo pipoca defronte da tv. Quando vem para cá me visitar? Agora tenho um telefone, por que não me liga? 85288YQ. Ontem ligou uma pessoa que perguntou se eu era o "rapaz do teatro" que vez ou outra vai a festas. Eu disse a ela que não conhecia nenhum "rapaz do teatro", muito menos um que vez ou outra vai a festas. Queria um telefone do tipo móvel, que não precisasse de fio. Um com rodinhas, talvez, não sei. Preciso ir repousar porque amanhã será um dia de novo estranho: sabe aquela coisa de sempre se sentir inferiorizado porque um chefe ou outra pessoa indiretamente dá exemplo do que é correto e faz interrogatórios sobre sua vida pessoal? Evito conversar pra não me sentir incorreto e acabo sendo visto como tímido ou doente. A questão é: sou doente ou estou doente? Ou os dois? Ou nenhum dos dois? Li no hebdomadário que estão construindo uma Capital aí, uma cidade modernosa. Que bom. Por favor, não mande esta carta de volta com correções e interrogatório. Desejo-lhe também um feliz Natal.

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