SOBRE
BELICHES E CALCANHARES
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Carla
Deboni
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Confesso que a princípio não notei aquele pé balançando sonolento na cama acima. Estava concentrada em um livro que acabara de comprar. Só quando chegava ao capítulo cinco é que fui reparar no pé. Que se movimentava feito um para-brisa, mais parecia acariciar do que afastar os pingos de uma chuva iminente com seu vaivém. E me lembrei de que ao deitar no beliche, nem reparara no rosto hospedado acima, tão perdida estava nos planos e aflições do dia seguinte. Com certeza era um pé masculino. Com alguns calos visíveis e calcanhar esquecido, tinha aquela textura de quem já andou por muitos caminhos. E que continua a vagar, sem calçadas ou calçados fixos. É possível que tenha marcas de tropeços em algum dos dedos, mas era um pé tímido e não pude vê-lo completamente. Ao me inclinar um pouco vi uma tatuagem. Dessas que a vida impõe quando em passo falso. Mas o meu movimento brusco de aproximação o assustou e o pé se escondeu na imensidão da cama acima. Cansada de esperar sua volta, logo depois adormeci. Já era noite quando acordei, ele não estava mais lá. E foi em vão que caminhei pelo albergue à procura daquele calcanhar. E eu que tinha apenas 19 anos. |
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