FRONTEIRAS
DO DESCONHECIDO
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Pedro
Brasil Jr.
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Longe vai o tempo das praças com coreto ladeando a igreja e fervilhando gente nas noites de sábado, depois da missa e do sermão, onde todos, irmãos, afluem à praça para jogar conversa fora, sem demora afinal, a semana fora longa, trabalhosa e as novidades jorram como o líquido precioso num olho d'água. As carroças rudes rodeiam a praça fazendo zoeira com suas rodas e as ferraduras dos cavalos sobre os paralelepípedos e nelas seguem o rumo a gente simples que na madrugada já calejam as mãos nas enxadas. O que restam são as charretes bem pintadas com seus condutores alinhados, prontos para levar os mais nobres a seus magníficos solares. Damas bem vestidas e enchapeladas desfilam de braços dados para mostrar seus trajes importados, sedas chinesas e sapatos italianos. O tempo nem se importa com a escrita!... As noites estreladas foram tantas... Nasceram tantos meninos e meninas e com eles muitos folguedos resistiram por décadas. Os antigos casarões com seus balcões e lanternas fumegantes foram sumindo, dando lugar a arquiteturas modernas. Até a igreja passou por reformas e o padre já é outro também. O coreto tentou resistir até se impregnar de ferrugem e dar lugar a mais espaço. Já não se vêem carroças e nem charretes. Os carros disputam uma vaga e a praça é uma festa de som insuportável regado por bebidas, palavras sem nexo e cenas desconexas, sem um sentido, sem um propósito. Dos poucos casarões antigos que resistiram, o de dona Mariana é ainda imponente, mesmo com a pintura desgastada. Mantém seus janelões panorâmicos, seu enorme portão de entrada, lanternas ainda ativas e uma escadaria com acesso à varanda do andar superior, ponto estratégico de onde várias gerações puderam admirar aquelas noites quentes, estreladas e agitadas pela multidão naqueles encontros semanais. Dona Mariana ainda fica na varanda bem quietinha, atenta aos movimentos modernos e dando seus pontos precisos de crochê sem precisar olhar para a agulha. Subitamente as escadarias perdem o silêncio e pouco a pouco seus netos vão chegando para um rápido paparico. É sempre assim, uma beijoquinha, um pedido de benção e lá vão eles para o grande burburio da praça. Mas hoje dona Mariana está decidida há mudar um pouco a rotina e os faz permanecer por mais tempo, só para contar um pouco mais daqueles tempos em que sua juventude era regada a esporádicos passeios pela praça e quando cada passo era devidamente vigiado pelos mais velhos. Ela então diz aos netos: -Sintam! Sintam o aroma desse perfume de dama da noite! Um deles argumenta: -Vovó, que cheiro horrível! A senhora chama isso de perfume? Ela sorri! -Verdade meu neto. Não é lá tão agradável, mas tem em sua essência um tanto de recordações. Quando vocês envelhecerem certamente que vão identificar aromas que também vão avivar suas lembranças. Então ela aponta para um canto da praça e diz: - Lá, na ponta da direita da igreja, naqueles tempos em que eu tinha uns 14 anos, sempre aparecia uma mulher com uma sombrinha cor-de-rosa, bem vestida, lábios vistosos por um batom vermelho e um rosto tão angelical que nos deixava ansiosas para ter mais idade. Minha mãe ralhava comigo e com minhas irmãs quando falávamos da mulher misteriosa que surgia do nada no canto da praça e lá ficava observando a multidão. Não entendíamos as razões, porque éramos puras, inocentes e ao nosso redor a vida era simplesmente viver. Não aconteciam crimes, a não ser vez ou outra em que alguém brigava por ali, mas eram contidos rapidamente. Havia respeito, havia horário para tudo e qualquer coisa diferente que observávamos era de imediato questionada e na maioria das vezes proibida de se falar. Verdade que na medida em que a idade avançava, descobríamos coisas novas, que se tornavam segredos perigosos. Na praça existiam outras árvores como essa e o cheiro da flor era muito mais forte. Impregnava o ar e acredito até que era responsável pelo sono mais rápido, pois num instante olhávamos a multidão na praça e no outro, acordávamos com os galos cacarejando pela redondeza. Um dia, a curiosidade não me impediu de fazer a descoberta maior e num descuido dos meus pais, me enfiei na multidão, rápida como um gato assustado e consegui chegar bem perto daquela linda mulher. Parei estática à sua frente, sem dizer uma só palavra. Olhei o seu rosto, os seus lábios, os seus olhos, os cabelos, a roupa. Ela também me observou dos pés à cabeça e abriu um sorriso tão lindo que jamais eu poderia esquecer. Voltei rápido para casa como se nada tivesse acontecido. Algum tempo depois, os sinos da igreja dobraram no meio de uma tarde e havia uma grande confusão na praça. Sabia que alguém havia falecido e quando isto acontecia a noticia chegava rapidamente. Naquele dia ninguém tocava no assunto, mas lá na praça, homens e mulheres iam chegando e o burburinho aumentava. O que sei é que repentinamente todos entraram na igreja e pouco depois fomos todos para lá também. Havia um silêncio profundo e no altar o padre fazia sua reza em latim. No caixão havia uma mulher, mas não deixavam à gente ver quem era e ninguém ao menos dizia o nome ou o parentesco. Então o padre apenas olhou para todos e disse que aquela era a casa do Senhor e que todos independentes dos seus pecados tinham o direito de receber ali suas bênçãos. O caixão foi carregado pela nave da igreja até a carruagem funerária que esperava na porta. Quatro desconhecidos carregavam o caixão e dali em diante, a carruagem partiu sem que ninguém a seguisse até o cemitério como era o costume. Perguntas em casa não faltaram e respostas jamais foram concedidas. Passei um bom tempo tentando descobrir quem teria sido a falecida tão desprezada. Uma noite, como aquelas tão tradicionais, reparei que a mulher que sempre surgia na ponta da praça não havia aparecido e foi então que fiz meu comentário e desta vez não puderam esconder a verdade. Tinha sido ela a falecida desprezada, que morrera por causa de uma pneumonia. Então eu soube que ela era uma das moças do bordel que ficava distante da cidade e que era denominada sutilmente por "dama da noite". Já bocejando, dona Mariana queria seguir com sua história, mas os netos começaram a cantarolar, a fazer uma boa farra e lá se foram rindo muito com o causo da vovó. Dona Mariana dormiu ali mesmo em sua velha cadeira de balanço e em seus sonhos regados pelas recordações, a bela mulher de outrora ressurgiu imponente, com o mesmo sorriso nos lábios, com a mesma pele aveludada dizendo a ela: - Olá Mariana! Está uma noite muito linda, o perfume toma conta do ar, as histórias seguirão sendo escritas nos livros da vida e nós, vamos agora juntas para uma nova aventura pelas fronteiras do desconhecido. Na manhã seguinte, os sinos da igreja dobraram fúnebres. |
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