Tema 199 - DAMA-DA-NOITE
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DAMA-DA-NOITE
Maurício Cintrão

Há muito tempo, quando as letras ainda não eram tão íntimas e o amor era mais letra do que intimidade, escrevi: “minha dama da noite cheira a sabonete Gessy”. Romântico como propaganda em ônibus.

Lembro que funcionou naquela época. Encantou a quem havia de encantar. Uma dama que conheci na noite, perfumada como o arbusto noturno, mas que não exercia a profissão que emprestou luxúria ao jasmim da noite (cestrum nocturnum). Era bela e perfumada, séria e encantadora.

Não que as damas-da-noite profissionais estejam impedidas de ser sérias e encantadoras, ou que as damas encontradas à noite tenham que ser carrancudas e sem graça. O que dita a semelhança ou o feitiço não é a atividade fim, mas a poesia-meio.

Curioso notar que a dama-da-noite (a planta, não a então minha namorada) só trescala seu perfume no final da tarde porque depende das mariposas para espalhar seu pólem. Mariposas que também empresam sinônimo às damas profissionais que vende seus serviços e corpos na noite (muitas vezes de dia).

Mas a minha dama-da-noite daqueles tempos ingênuos não mariposeava. Quem borboleteava em pensamentos bonitos (e/ou safadinhos) era eu, que não tinha nada de dama, nem de noite, nem de dia. E, cá entre nós, também não era lá muito perfumado. Talvez daí tenha aproximado a dama desejada e querida do perfume de sabonete.

O Gessy da época das poesias de propaganda de ônibus era um produto ainda prestigiado. Muitos dos leitores desta página não são da época dele. Portanto, vale recorrer ao blog do Dhota, “Caríssimas Catrevagens”*, para contar: o sabonete Gessy surgiu em 1913 para higiene de toda a família e virou produto exclusivo das mulheres. Calma, calma! Eu não conheci aquela dama-da-noite no começo do século passado. O sabonete é que é daquela época.

Bom, o fato é que a relação com aquela dama sobreviveu vários anos, mas não resistiu tanto quanto o sabonete. Evoluiu, multiplicou-se e feneceu como tantas outras coisas boas e perfumadas da vida. Restaram as lembranças das fracas poesias, a filiação e a sensação de ter perdido o compasso da história.

Os perfumes foram mudando ao longo dos anos que se seguiram. Mudaram as preferências e as referências junto com as damas e as noites que se sucederam. Não foram tantas assim (as damas, não as noites). O fato é que encantaram, desencantaram, geraram lembranças, recordações ou pesadelos, conforme o caso.

Porque perfumes e melodias despertam sentimentos. De alguma forma, os arquivos da memória ligam aromas e sons aos escaninhos afetivos. Algumas fragrâncias e frases melódicas emprestam ao amor as marcas indeléveis da eternidade, para o bem ou para o mal.

O amor desbota, desfaz suas costuras com o tempo. Mas a lembrança olfativa e da audição ficam para sempre. Pelo menos para mim que já mudei de casamento duas vezes e testo no atual (o terceiro e último, me prometo) a resistência da capacidade de amar. Temos resistido com leveza e graça, feito borboletas: eu, o amor perfumado e ela.

Mudaram os sabonetes e os perfumes ligados aos amores da minha vida. Hoje, o jasmineiro da calçada em frente de casa cheira a antigas damas que já não ocupam minhas noites. O perfume de minha dama não é mais de sabonete, é de pele tatuada e muitas conquistas que ainda estão por vir. Na verdade, minha atual e definitiva dama da noite cheira à Kenzo. Mas eu vou deixar a história desse perfume em minha vida para uma outra crônica.

* http://carissimascatrevagens.blogspot.com/2009/01/sabonetes-gessy-um-banho-de-beleza.html)

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