UM
PASSEIO DELICADO
|
|
Marcelo
Moraes Caetano
|
|
Velit
nolit O reflexo do sol sobre a neve das primeiras horas da manhã deixava a parede da casa de Isabelle e Edvard com um tom ainda mais alvo do que a água dos bosques vizinhos. O casal acordara naquela manhã de domingo disposto a seguir à floresta para encontrar pássaros e cantos que eles normalmente só podiam abraçar muito ao longe. A Noruega tem neve constante em algumas montanhas; em certos condados, maior o privilégio, a neve sequer precisava esperar pelo inverno para aparecer brincalhona como pinceladas de orvalho musical sobre as teclas das árvores e da maciez dos lagos hospitaleiros. Aquela era uma das manhãs de outono cuja bênção do manto fino soava pura como os gelos, esses caleidoscópios que amam os bosques noruegueses por sua sinfonia invisível. Isabelle acabou de amarrar a fita vermelha de sua cintura enquanto o marido calçava o segundo pé da bota rígida e marrom. Os cabelos longos da esposa foram cuidadosamente arejados com um pente, a madeira fosca, o cheiro de uma longa miniatura de floresta em gorjeio, a vastidão protegida. Sobre seus cachos castanho-claros, pôs um lenço floral de fundo azul-celeste e pontilhado de miúdas pintas brancas: pareciam estrelas sob um céu de crepúsculo florido. Pontes sobre a lua. (Sorriam?) O vestido era todo cor de marfim com um único contraste vermelho-sangue da fita que envolvia a cintura fina de Isabelle. O fio escarlate sublinhando a delicadeza de seu umbigo ali guardado bem dentro daquele vestido quase-branco e opaco, feito uma casca de ovo a proteger a imensa fragilidade da sua pele. Mas ela também calçou botas seguras, caso tivessem de atravessar algum córrego pedregoso. Edvard vestiu-se com um sobretudo de couro marrom grosso e pendurou sobre o ombro esquerdo a espingarda. Não iriam a uma caçada, mas havia lobos nos arredores mais distantes, e andar por eles desprevenido poderia significar tragédia. Saíram tão logo terminaram o café da manhã. Em volta à casa, a neve no chão e no telhado era como um aconchegante ninho de algodão e seda fina. Trinados de ouro se ouviam, posto que a natureza é uma concertista exigente e nada escapa à sua intrafegável partitura. A casa não ficava propriamente dentro do bosque, mas os sons da mata chegavam até ela com a clareza longínqua de algum sino que badalasse convidando os fiéis à igreja no alto de um morro bem próximo. Os sons eram o pão do dia. Podiam-se distinguir vozes de pássaros, muitos pássaros, os mais diversos: cucos, andorinhas, gargantas-azuis, pintassilgos, rouxinóis, falcões, colibris. A harmonia que chegava daquelas plagas trazia uma sonata agradável aos ouvidos do casal, especialmente aos de Isabelle, que, sob a casca de ovo, pássaro triste, sofria, envergando-se a cada dia pelo peso daquele sentimento de finitude que não tinha causa de existência no marido - o boníssimo e amado Edvard - mas sim numa herança do pai, que lhe deixara como legado uma chácara em Hordaland, uma quinta em Buskerud, uma casa em Oslo. E uma melancolia que a cobria como um capuz de nuvens cinzentas. Um véu de finíssimos fios de friúra. Tristeza. Preocupado com a inexplicável - às vezes duradoura - condição da esposa, Edvard sempre procurava levá-la a passeios pelo campo, às óperas mais bonitas e delicadas, a encontros com os amigos comuns de tantos anos (que o eram do casal pelo fato de os dois jovens já se conhecerem desde a infância, tendo sido amigos ainda nos primeiros anos de vida), o que dava ao casamento uma ponte ensolarada entre o amor de homem e mulher e uma amizade cristalina de irmão e irmã. No entanto, estava cada vez mais difícil conter as repentinas e frequentes quedas de Isabelle no abismo insondável de uma tristeza lírica - tão contrastante com a delicadeza da face juvenil. Partiram em direção ao bosque e deixaram a bela casa para trás. Levaram um pequeno cesto com algumas frutas e um bolo de nozes, que os alimentaria às margens do lago aonde queriam ir. A manhã estava muito clara e a neve não caía mais. Apenas em alma. Quando chegaram à beira do lago, Edvard estendeu uma toalha branca sobre o chão, para que pusessem ali as frutas e o bolo. O cheiro doce logo se acertou ao naipe dos violinos, das águas, das aves, dos metais, das madeiras, do córrego sobre pedras de milhões de anos de vida, e parecia que um maestro presente deu ainda mais vida àquela simples orquestra matinal. Edvard conhecia as frutas de Isabelle, uma a uma. Eram as claves de sol com que anunciava à esposa o quanto a amava. Pôs os pêssegos, os figos, as nozes, amêndoas, lado a lado. Ameixas! Deitou no outro canto a espingarda, e a jovem esposa colocou sobre ela o lenço florido que tirara dos cabelos. Seu sorriso perfurava o véu da tristeza. Uma chama de vela num sombrio canto da alma. A labareda crepitante da lareira que abastece de esperança a sala clara, mesmo que lá fora a borrasca seja turva e a tempestade esteja severa e negra. Isabelle começou a tirar os pratos da cesta; o marido se encostou contra uma pedra, sentado no chão, puxando do bolso um caderno pequeno, de onde começou a ler algumas poesias que escrevera para a querida Belle, olhando os dois grandes poemas que ele sabia compor: os versos de caneta fina sobre o papel; e a brecha de felicidade que ele conseguia fornir à sua mulher mil vezes amadíssima. Dóceis poemas, que aludiam à clareza dos olhos da moça, à sua delicadeza, aos seus gestos de pouca fartura, à beleza rósea da maçã de seu rosto, ao contorno sutil de suas mãos, ao seu ouvido fino e acostumado às boas músicas e aos bons pássaros, à fluidez de seus cabelos quase sempre contidos por lindos lenços ou por lindas presilhas, à brancura de seu sorriso discreto e franco. Isabelle ouvia tudo com uma alegria de alma, que o capuz de nuvem cinzenta de tristeza vez por outra ainda teimava em turvar rígida mas discretamente. Para renascer como um filhote que volta ao ninho. O marido agora deixara de ler as poesias que já havia composto e passou a escrever outras naquele instante tão amoroso de casal apaixonado. Entreteve-se tanto em sua criação, que a esposa, a sorrir serenamente, levantou-se e resolveu andar um pouco em torno daquele plácido laguinho claríssimo, em que a neve não conseguira impor senão algumas leves e finas ilhas de gelo, sem que isso fosse capaz de impedir a vida abundante dos peixes coloridos que pulavam, pululavam e serpenteavam por dentro das águas. O marido adormeceu após ter desenhado no caderno a face da amada mulher. A última linha, seu olho esquerdo semicerrado, olhando o chão de cada dia. Isabelle viu um pássaro que parecia envergar uma túnica laranja. Um laranja dourado, forte e com tanto espírito; como um piano de cauda iluminado pelo holofote áureo em pleno palco de um teatro de ópera lotado de outras luzes menores. Inquieta, com uma vivacidade infantil que, a despeito de sua constante tristeza, jamais abandonava seus olhos azuis, seguiu-o floresta adentro. Hipnotizada foi. Este pássaro encontrou outro de igual plumagem, e a vivacidade nos olhos da moça duplicou: seus ouvidos não perceberam senão a doce melodia descontínua daqueles dois pássaros curiosos, solistas da ária extravagante, numa opereta lúdica. Ela os seguiu. Subiu um pequeno monte, por sobre algumas pedras, pés firmes no chão da mata: se alguém estivesse ali, ao lado de Isabelle, poderia jurar que os pássaros a conduziam intencionalmente a alguma secreta morada. A que páramos a levariam os passarinhos especiais? A quais plagas aqueles sopranos dourados a traziam pelas mãos? No alto de um outro montículo, havia um platô e um minúsculo riacho formado decerto pela neve derretida alguns instantes atrás, trazida de parte do sopé da montanha maior, que soerguia sobre o bosque uma gigante muralha de tonalidades verdes ou brancas ou azuis. Ela atravessou o riacho, que não era mais fundo que seu tornozelo. Os dois pássaros bailavam no ar, bicando-se, cantando um tipo mágico de chilro nunca antes ouvido. Formavam um dueto que tanto era de balé como de flauta. Ou tocavam harpa com os bicos? Então ela dobrou por uma parede erguida em pedra, como a aresta menor da montanha parecendo a mãe do bosque. Ali havia ainda um lago, muito maior que aquele riacho atravessado há pouco, cercado por salgueiros e jasmins de folhagem túrgida, que iam ao encontro da água fresca sempre alimentada pelas neves. O lago era surpreendentemente grande. E era fundo, porque a escuridão de suas águas o revela indubitável. O sol entrava no vale através da complacência do cume da montanha, a permitir apenas aos raios mais educados e polidos o caminho itinerante à floresta, aos bichos, à face da moça. Porém o lago imenso e negro era um contraste (será que belo?) na paisagem discreta de cores vivas e alegres e por isso mesmo talvez admirável. Talvez. Isabelle sorriu um pouco mais profundamente do que de costume. O ambiente era lindo, ameno; como ela estava acostumada a ser tratada. O próprio lago conflitando no centro, no alto um sol definitivo e com chamas de ouro, águas numa dimensão espantosa de pouso fundo e de bordas duvidosas, negríssimo, tinha lá grande coerência com seu estado de espírito. Sentiu-se pertencente ao mundo. Sentiu-se uma figura pintada naquele quadro manso, cujas pinceladas só poderiam ter sido feitas por um Criador sereno e sutil, cuja mão tremera talvez num dado instante ou furara a tela com um olhar preto e cheio de lágrimas doces contornadas em lago. Deu um sorriso e virou-se, pois queria voltar para perto do marido, que adormecera em meio a poesias e devaneios. Quando se virou, porém, viu um vulto negro se remexendo baixo por entre as pedras que a levaram até ali. Parou. Ficou alguns segundos em silêncio - tempo que o relógio não seria capaz de medir. Nas mesmas pedras, ouviu um barulho de pisadas sobre as folhas secas do chão. Sem saber por que, olhou para cima, para o alto da montanha, como que esperando que o Autor daquele quadro musical retomasse a sua desejável postura de serenidade e sutileza e removesse com um mata-borrão a mancha de sobressalto - e pavor? Pois aquela mácula não tinha coerência nenhuma. Era uma ferida funda demais, das que ela não sabia absorver. Enquanto estava olhando para cima, o vulto negro voltou a remexer-se nas pedras, dando agora um pulo de dois metros e revelando-se um lobo imenso forte. Era negro como rocha grossa chamuscada por décadas. Parecia um trovão na manhã de sol. Os músculos da face de Isabelle contraíram-se inteiros, numa expressão de medo, mas antes de abandono. O lobo ficou parado olhando para ela, que olhava para ele e apertava a borda de seu fino vestido marfim com uma mão enquanto a outra espremia a fita vermelho-sangue em torno da cintura. Poderia gritar - pensou - e seu marido a viria salvar do animal violento que a vasculhava com olhos de predador. Dois metros à frente. Só. Mas o marido estava longe o bastante para, ouvindo o grito, não ter a menor ideia de onde ele vinha; até que descobrisse, já teria havido tempo para que o lobo a alcançasse. Estava só. Na direção oposta à do lobo havia só uma íngreme parede em rochas ou as águas geladas do lago, só isso, e ela sabia que lobos sabem nadar e se atiram amiúde para dentro da água em busca de alguma presa pretendida. Só. Não, mais: que são até exímios nadadores, que aquele seu vestido marfim com fita vermelha pesaria tanto encharcado dentro da água, que a faria nadar mal como só um pedregulho. Mas só? Ao redor, só o redor. Só. O lobo estava parado, fixo, fitando-a olhos nos olhos, sem piscar, a musculatura rígida e pronta para uma corrida em seu encalço, os pelos eriçados, hirtos e pontiagudos como uma flecha que desafinasse qualquer bela sinfonia. Ela estava pálida e muda. E tão só. O lobo lentamente abre a boca e começa a mostrar-lhe os dentes, dois longos caninos, longos caninos, dois, que alma nenhuma seria capaz de medir. Ela levou a cabeça levemente para trás, olhos abertos. Deus! Os olhos finos de amor que o marido há pouco esboçara no papel! O lobo franziu o focinho e agora mostra-lhe todos os dentes, incontáveis dentes, preparando com uma das patas dianteiras o que seria uma corrida de caça na direção dela. Ele - ela paralisada - ele solta um rosnado de caçador. Ela muda. O lobo rosna mais uma vez, dentes à mostra. Olhos de ódio. Antes que o lobo desse a corrida fatal, Isabelle arranca com toda a vontade a fita vermelha que cercava sua cintura, com sua força total, todas as suas unhas, e rasga o vestido tirando um pouco de sangue da própria pele, que pinga; Isabelle arremessa-se, agachada no chão, como uma ursa feroz, levantando-se agora numa corrida furiosa na direção exata do lobo, ela mostrando a ele seus dentes e soltando-lhe um rugido de raiva; mais: de ódio; atirando-se contra o horrorizado lobo como a gigante caçadora sanguinária, pronta para despedaçá-lo com seus dentes e suas unhas e seu descomunal tamanho insuperável de mãe a defender os filhotes, a cria, as vidas, as fragilidades. O lobo imediatamente fecha a boca e põe-se a correr de Isabelle, o pânico estampado, antes que ela o alcance e dilacere, embrenhando-se pelas árvores cerras do bosque, sumindo. Indo. Sendo sombra de lobo. Sendo sombra, som, só... Nada mais. A montanha plácida. Neve. Anoitecia. Bem cedo começa a anoitecer nesta época. Isabelle volta para o lado do marido, que ainda dormia. Acorda-o delicada. Comem ainda algumas frutas e um outro pedaço do bolo de nozes. Ela prende os cabelos e passa o lenço florido em torno da cintura fina, cujo sangue estancara deixando uma rosa vermelha em sua pele. Voltam para casa. Edvard lê os poemas novos para ela no caminho. Eram versos bonitos, ensolarados, cúmplices, confortáveis. Ela não precisa disso. Não mais. Porque Isabelle nunca mais vestirá seu delicado manto cinzento de tristeza. O véu da finitude se embrenhou sujo pela mata junto com o lobo afugentado. Ela jogou sua friúra fora no medo daquele animal sem razão. O vestido rasgado por ela própria substituirá qualquer capuz de medo. A rosa aberta do sangue estancado pela sua própria unha tinha um espinho grande o bastante para dilacerar o fino tecido da melancolia, para sempre. Que finalmente se rasgou de ponta a ponta, deixando o sol entrar ao seu tempo e formar com a lua um dueto, não um duelo, de ouro e prata, dia, sombra, luz e noite, que não geram mais conflito, mas, sim - por que não? - a convivência de opostos harmônicos. O reflexo da lua sobre a neve das primeiras horas da noite deixava a parede da casa de Isabelle e Edvard com um tom ainda mais alvo do que a água dos bosques vizinhos. |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|