PORTEIRA
FECHADA
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William
H. Stutz
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Mas o senhor vai comprar a fazenda toda? Toda, todinha de cerca a cerca, de ponta a ponta. Daqui do córrego até o espigão da mateira onde ficam aquelas grotas e a cachoeira. Mas para que tanto chão? Nem de caminhonete vai dar para correr esse trecho todo! Capricho meu, mas tenho lá meus motivos resmungou meio que sem vontade de explicar nada. Passara a vida toda justificando cada pequeno ato seu, estava de saco cheio. O peão ficou olhando desconfiado para aquele senhor de cabelos começando a ficar grisalhos e barba por fazer, com já sabido jeito meio bravo. Tinha cara de poucos amigos e na verdade poucos mesmo tinha. Se não o conhecesse desde criança pensaria que era grileiro e que as intenções com a propriedade não eramdas melhores, mas sabia que ele era assim esquisito desde menino. Cresceram juntos naquelas terras da família dele. Com a morte do pai fora feita divisão e sabia ainda que para ele tinha tocado a sede e curralama principal. Não por acaso ou capricho, pois o patriarca bem sabia que era ele que gostava e cuidava de tudo. A vontade do velho era deixar tudinho para ele desde o começo, mas sabe como é a lei nesse país. Isso sem contar que mesmo com a divisão tinha dado briga entre os irmãos, cada um achando que tinha ficado em desvantagem. E eram quatro. Dois irmãos e duas irmãs. Pior do que os irmãos eram os cunhados e cunhadas, esses eram piores. Usura só. Raramente vinham à fazenda e quando vinham nem o sapato sujavam. Eram todos homens de mãos finas, sem calos ou cicatrizes pelos braços e as mulheres eram daquelas acostumadas a mandar e nada mais, nem fritar ovo ou matar um frango sabiam. Acostumados que eram ao aconchego de escritórios, ar condicionados, a grandes casas repletas de paranóias e empregadas. Anos atrás tanto fizeram que com a ajuda das esposas de maridos bunda-mole conseguiram fazer o velho reformar a sede, fazer suítes e piscina. Isso tudo sob a ameaça de não mais levarem os netos para ver o avô. Contrariado, mas apegado nas crianças, fez o gosto deles. Fazenda é trabalho, não clube de fim de semana. Atendeu ao pedido, pois não podia imaginar viver sem os netos. Para seu desgosto morreu quase sem ver as crianças. Depois de fazer tudo que pediram pouco vieram à roça. Enjoaram, queriam mesmo era o luxo dos cinco estrelas. As filhas tinham ali sido criadas, pé no chão, subindo em árvore, caçando passarinho com os irmãos, chupando fruta no pé, rapando panela de massa de doce e assando batata nas brasas do fogão. Ouvindo histórias de assombração e de fadas. O medo era tanto que dormiam agarradinhas com o pai. Ele zeloso, velava. Os dentinhos de leite foram jogados no telhado da casa. Quantas e quantas vezes passaram noite no curral ajudando pai a cuidar de vaca com cria atravessada, de difícil nascer. Se a vaca morria as meninas cuidavam do bezerro. Punham nome, tratavam como boneca viva. Bons tempos. Como, em nome de Deus, conseguiram esquecer tanta coisa boa, tanta felicidade? Foram para a cidade estudar, só um filho ficou na lida com ele. Se os outros estudaram ninguém sabe, mas que gastaram uma nota preta do pai com apartamentos, carros, roupas, clubes e festas isso é certo. E pior, acabaram casando com aqueles malas, filhinhos e filhinhas de papai. Nata da sociedade da capital, com sobrenome, mas sem chão para caírem mortos. Desfilavam pedigree quatrocentão, mas não faziam para pagar as contas. Comiam angu e arrotavam peru. As meninas caíram direitinho no conto do vigário e em troca de pomposa referência familiar que merda valia, faziam de tudo para segurar seus maridos preguiçosos e metidos a besta. Como bons gigolôs que se prezassem deviam ser bons de cama, só pode. Agora que a fonte tinha secado só restava trabalhar, mas para tal não levavam jeito. Assim, antes de tomarem outro rumo queriam dar o golpe de misericórdia nas mulheres e nos filhos que a contragosto custaram a fazer. Agora era torrar as terras deixadas, se fartar em algum cruzeiro pelo caribe ou quem sabe mais longe, quem sabe se embebedar nos bares dos hotéis nas paradisíacas praias de Koh Samui. Vida de rei. Depois? Pé na bunda das esposas e sair à cata de outra imbecil carente, mas com posses. Estava na cara, o fim da história todos podiam imaginar. Mas só ele percebia e faria de tudo para que as terras da família não se transformassem em mais um condomínio de luxo ou como pedaço de bolo de casamento fadado ao fracasso, fosse fatiado de qualquer jeito em pequenos sítios de gente barulhenta, urbana ou de intelectuais chatos de feriados e fins de semana, metidos a naturebas. Naturalmente, naturalistas de carteirinha da WWF, sócios contribuintes do Green Peace, protetores de baleias e focas que ignoravam e desprezavam os malabares e flanelinhas das ruas que frequentavam, tropeçavam em mendigos nas calçadas e ainda os maldizia. Tinham, contudo, dó de peixinho de aquário. Arrepiava só de pensar. Vou comprar tudo, nem que para isso tenha que vender até a alma para o cão, junto esse recurso de qualquer jeito. E comprou mesmo de ponta a ponta, de cerca a cerca. Era senhor de seu próprio reino. Certa feita saiu a cavalo para rodar a fazenda. De companhia só o velho cachorro do peão. Acostumado que estava com lida de gado e antigas caçadas de capivara, não podia ver tropel de casco que lá ia junto. Agora sabia. Que família que nada, que apego a coisas de pai ou arrogância de irmãos e irmãs! Eles que se danassem, que cuidassem de suas vazias e falsas vidas! Estava na verdade comprando suas lembranças, seus sonhos. De lá ninguém levava nada, nem um pedacinho, era tudo seu agora, até o doce ar que respirava. Ia de pensamento solto quando escutou um pampeiro. Não é que o encrenqueiro do cachorro tinha encantoado um tamanduá bandeira no meio das locas de pedra!Algazarra só. Irritado, puxou da rédea. A vontade era deixar aquele cachorro velho ser estraçalhado pelo bandeira. Afinal, por que esse bicho tinha que acompanhá-lo? A consciência ou a preguiça de ter que explicar o triste fim do danado o fez mudar de idéia. Galopou sem pressa na direção do aranzé. De longe já viu a poeira subindo. Cachorro arrepiado e com seus poucos dentes arreganhados e o bandeira em pé, braços abertos mostrando as unhas. Aquela briga não ia dar em nada. O cachorro era velho mas não era burro, se mantinha à distância segura daquelas garras. O tamanduá, como a saber que mais podia, só se punha em posição de defesa. Dito efeito, os dois cansaram de afrontar e cada um seguiu seu rumo, não sem a cada segundo dar uma olhadela por cima do ombro como a cantar vitória que não houve. E ele de camarote, do alto do arreio, assistindo e rindo da bobeira animal. Que coisa os bichos, tem hora até têm atitudes tão idiotas como se gente fossem! Observando o cabisbaixo cachorro voltando para junto dele, se deu conta de onde estava. O silêncio barulhento da mata fechada, deixava bem evidenciado o murmúrio gostoso e contínuo da cachoeira. Ali sim ele passara bons momentos. Cutucou o cavalo e rumou em direção à queda dágua. Agora quem olhou com danada preguiça foi o cachorro. Não agüentava uma gata pelo rabo, ia acompanhar não. Arranhou o chão com as duas patas dianteiras, deu três voltas em torno do rabo e ali deitou. Fico aqui e espero ele voltar, deve ter sido seu pensamento. Um segundo depois já estava dormindo e de movimento só o bater das orelhas a espantar os mosquitos, que em nuvens o acompanhavam sempre. A cada avanço do cavalo, mais alto ficava o som da água a bater no poção. Foi chegando. Apeou do cavalo e sem pestanejar, como nos tempos de menino moleque pulou de roupa, canivete e tudo dentro daquela escura e gelada água. Deu um grito de prazer, esvaziou os pulmões, tamanha a força do berro. A passarada curiosa, pousada nos jequitibás-rosa que sombreavam o poço, entre pânico, piados de alerta, voou para bem longe. O cachorro cá longe na trilha abriu um olho só, sacudiu uma das orelhas tronchas e voltou a dormir e a sonhar com tamanduás. Deixou-se a boiar na água, pensamentos soltos, tanta coisa veio lá de dentro de suas caixinhas da memória. Casos, gente, fatos, cheiros e gostos. Lembrou do importante acontecido ali mesmo. Amor não correspondido até aquela manhã. Banho de cachoeira, brincadeira de pegar. Atração sem tamanho. Tinham acabado de sair da mesma gelada água do poção. A camiseta dela estava grudadinha no corpo, visão única, santa. Aquele súbito nó na garganta tinha se transformado em redemoinho de emoção. Os corpos se misturaram, eram um só, um dentro do outro. Dois gritos de prazer e a sensação de liberdade, naquele exato momento. Nunca se esquecera, saíra de seu corpo, flutuava em leveza jamais sentida, pesava menos do que paina ao vento. Relaxamento, felicidade e paz. A lapa de pedra. Do jeito que veio ela se foi para nunca mais, bem que procurou por bom tempo.Última notícia que teve dela foi que estava na França. Bem sucedida pesquisadora. Abandonou a busca, não perdeu a lembrança. Deitou de barriga para cima debaixo da lapa de pedra. Fechou os olhos e sentiu outra vez o cheiro de cio da moça. Ficou excitado como a muito não ficava. Tesão de verdade. Tesão de estar vivo. Sentiu uma saudade de um não se sabe o quê. Instintivamente estendeu o braço para o lado como se fosse acariciar os seios dela novamente. Viu-se, sentiu-se, com suas mãos dentro de sua blusa. A mão cheia de areia e pedra o trouxeram de volta. Abriu os olhos e viu a escura pedra a lhe fazer sombra. Seus sonhos agora eram só seus, comprara sua felicidade e paz. Entre tantas lembranças gostosas cochilou profundo, nem idéia de quanto tempo se deixou ali ficar, largado. Só acordou, e assustado, com o pulguento do cachorro a lhe lamber a cara como a avisar que era hora de ir embora. Ao invés de ficar puto de raiva, agarrou o pescoço do danado e como de novo moleque, rolou com ele pela areia, não se importando com os rosnados de descontentamento do bicho. Ria como criança feliz. Até você seu pulguento velho e fedido, até sua nuvem de moscas, agora me pertencem por inteiro. Tomaram o rumo de casa, o cavalo mais ligeiro, ele mais leve e o cachorro em alegres pulos se fez revigorado e mais novo. Antes de sair tinha enchido o bolso com um punhado daquela terra da grota. Resolvido, iri a ainda aquela semana para Paris, e tivesse tempo e desse certo levaria até o pulguento e suas moscas para conhecerem os Campos Elísios, Champs-Élysées disse alto fazendo debochado biquinho. O velho cão merecia, pois única testemunha ocular da explosão de amor e gozo, quem sabe o quê, como talismã, poderia ainda presenciar. A felicidade é contagiante, a esperança renova. |
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