PORTEIRA
FECHADA
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Tieme
Mise
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Joana guardou no bolso surrado da blusa de algodão os níqueis que sobraram do troco da farinha com carne seca. Caminharia ainda mais de três léguas. Bebeu alguns goles de água da cabaça presa à cintura. O sol, impetuoso e forte do sertão nordestino, era indiferente ao desassossego de Joana. Enxugou o suor que escorria sem piedade de sua testa com a toalha já rala e puída. Tantas lavagens tinham tirado o amarelo encarnado do tecido, deixando uma cor imprecisa, desmaiada, encardida. Havia trabalhado na roça do Sr. Nino por quatro meses, chovendo ou fazendo sol. Combinaram um preço e, na hora da saída, o capataz havia cobrado o almoço, a janta e a dormida. O trato fora o dinheiro líquido, que não era muito. Mas o que recebera não correspondia nem a um terço do combinado. Brigou, xingou, esperneou. O capataz, irredutível, enxotou-a dali dizendo ser justo o pagamento. Disse que voltaria para cobrar o restante do acerto. Como morava só, tinha poucos gastos. O pouco dinheiro que ganhou acabou logo e agora o que restou fora revertido em carne seca e farinha que levava no alforje. O chapéu de couro de seu pai e que trazia na cabeça desde que ele se embrenhara pela mata não mais voltando, a mais de vinte anos, depois que sua mãe morrera de picada de cobra cascavel, marcava sua testa, empapado de suor. Levava também na cintura seu facão afiado, metido na bainha, enegrecido pelo tempo e uso. O chamava carinhosamente de nego e já a ajudara a manter cheia a barriga por inúmeras vezes e ou afastara os invasores, quando não os deixava tombado no chão esperando o socorro. Sempre lutara pela sobrevivência desde moleca e isso já fazia muito tempo. Porteira fechada para o amor quando descobriu o que os homens queriam dela, tendo engravidado uma vez e perdido em meio ao canavial depois de um dia inteiro de labuta no corte de cana, sozinha, sem que ninguém a ajudasse. Depois disso, jamais se permitiu ser enganada sem um troco. Quando venceu as três léguas, o sol ainda brilhava num céu completamente azul. Encontrou o capataz descascando cana Sarangó, assobiando uma canção sertaneja. Ele a inquiriu com o olhar. - Vim buscar o que é meu. O resto do meu pagamento. - Já recebeu o que era devido - disse o capataz, com um gomo de cana entre os dentes, olhando-a com rancor. - Não arredo daqui sem o meu! - passando lentamente a mão sobre a bainha do facão e endurecendo o olhar. O capataz avaliou a situação. Havia se enrabichado pros lados dela enquanto trabalhava na fazenda e fora repudiado com aspereza. Tentou pegá-la à força. Ainda se lembrava do soco que havia recebido no pé da barriga. Se ela fizesse um escândalo como parecia querer fazer, a situação pioraria. Já ouvira muitos relatos em outros lugares do que era capaz de fazer quando se sentia injustiçada. Já havia espetado muita gente com a ponta daquele facão. Pediu a ela que aguardasse. Abriu o livro de contas e parecendo fazer cálculos, sacou uma quantia da gaveta. Colocou em um envelope e disse: - Caso encerrado! Suma daqui. Joana apalpou a quantia no envelope. Parecia satisfeita. Fora fácil demais. Deu meia volta e foi andando devagar até a porteira de saída. Estava intrigada com a facilidade. Voltou seus olhos para a casa grande silenciosa. Parecia só estar o capataz. Começou a tirar a tramela da porteira e se viu deitada no chão, de bruços, após um estampido surdo. Não sentiu nenhuma dor. Antes que pudesse compreender o que tinha acontecido um filete de sangue saiu de sua boca. Tentou respirar e tudo escureceu. Depois de alguns meses flores nasciam numa plantação mais nova embaixo do pé da jaqueira e nunca mais se soube de Joana. |
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