Tema 198 - PORTEIRA FECHADA
Índice de autores
CAMINITO
Luís Valise

O casamento andava pela bola sete. A separação ricocheteava nas tabelas, e qualquer caçapa servia, era só cair. Mal se falavam - palavras necessárias cruzavam a mesa durante o jantar, embaladas em alho, cebola e fel. A mãe da moça, hóspede permanente no dois quartos e sala com sacada, tentava garantir o teto:

- Seja paciente, Malu, todo casamento tem essas fases. Depois, tudo se ajeita.

Maria de Lourdes ocultava da mãe de detalhes íntimos, mas aquela fase se arrastava há muito tempo. Douglas devia ter outra - ou outras - pela rua. O Duguinha sentia falta:

- Paiê, vem brincar comigo?

- Não amola, moleque, me deixa ver o jogo em paz!

A avó, preocupada, ajoelhava a artrite no tapetinho ao lado do sofá, e tentava distrair o menino, fazendo sinal com o dedo sobre os lábios pedindo silêncio. Malu pegava o vidrinho de esmalte, a acetona, o algodão, e fechava a porta do quarto. O vermelho das unhas dos pés, se antes sinalizava paixão, agora irradiava a amargura que lhe corroía as entranhas. Se ao menos tivesse coragem, já teria usado veneno de rato. Pra ele, ou pra ela. Pros dois. Não ia deixar o safado se divertindo com qualquer lambisgóia. Sete palmos de terra, era o que o Douglas merecia.

A firma promoveu uma campanha de vendas arrasadora, com anúncios de rádio e televisão, jornais e revistas, e entre os vendedores, um concurso: o primeiro colocado receberia um grande prêmio. Douglas percebeu ali a possibilidade de entrar numa grana preta, dar um bico na Malu, na sogra, no apê - o passeio com o Duguinha aos domingos tava garantido - e começar vida nova. Voltar aos tempos de solteiro, perder barriga, transar um implante de cabelos. Comprar um carro esporte, conhecer Buenos Aires, tomar um porre e cantar um tango. Era pedir muito? Meteu a cara no trabalho.

Seu nome estava lá, no alto da lista: Primeiro Colocado - Douglas Pimenta. Abraços de inveja, sorrisos de inveja. O Diretor pegou o microfone para anunciar o prêmio. Douglas já pensava no carro. Um amigo advogado dera conselho: - Seja rápido. Se ela tiver tempo pra pensar, te leva até as calças.

- Venha, Douglas, suba aqui no palco para receber o prêmio. É de homens como você que nossa empresa precisa, jovens decididos, com o futuro pela frente. Tenho certeza que você vai subir na empresa. Ainda vou vê-lo aqui, no meu lugar, entregando prêmios a outros jovens esforçados e promissores.

No palco, ao lado do Diretor, Douglas não prestava atenção no que o outro dizia. Pensava no carro esporte, em Buenos Aires, El Dia en Que Me Quieras...
E aqui está seu prêmio! O Diretor estendeu um envelope. Douglas apalpou, parecia um cheque. Sentia o coração acelerado. O homem comandou:

- Abra! Abra!

Os invejosos foram na onda:

- Abre! Abre!

Douglas rasgou a borda com cuidado, tirou um papel dobrado, abriu com dedos trêmulos, e lá estava o prêmio, o baita prêmio: sete dias em Nova Iorque, com o direito de levar a família! Sentiu lágrimas nos olhos. O Diretor se emocionou:

- Você merece! Você merece!

Dona Iracema viu a chance cair do céu:

- É a solução, Malu! Só vocês dois! Uma nova lua-de-mel! Tudo voltará a ser como antes, o Douglas voltará a ser como antes! Sei de casos assim, de amores que renasceram com uma viagem a dois ao estrangeiro. A Teresa e o Célio, por exemplo. E nem foi ao estrangeiro, bastou uma viagem a Caldas Novas, e o Célio largou a outra! Nova Iorque, minha filha! Nova Iorque!

Malu terminou o retoque da unha do dedão, fechou o vidro de esmalte, e decidiu:

- O Duguinha também vai!

Pela primeira vez na vida, Iracema sozinha em casa. Tratou de curtir o momento: saiu do banho pelada, pegou água gelada, sentou no sofá, ligou a tevê. Pelada. Nuínha. Primeira vez na vida.

O avião não era como nos filmes. A poltrona era estreita, seu cotovelo batia no do Douglas. O Duguinha espichava o pescoço na janela, mas não dava pra ver nada, tudo escuro. A viagem começava mal. E não melhorou quando serviram a janta: frango seco, purê sem sabor - Por favor, apertem o cinto - e medo. O Douglas dormiu em seguida. Parece que está mais gordo, ocupa todo o braço da poltrona. O Duguinha apagou. E eu aqui, acordada. Como é longe, Nova Iorque!

O Douglas disse que se virava em inglês, mas na imigração já foi um mico, gaguejava, chegou a ficar pálido. Deixaram a gente entrar, talvez porque eu carregasse o Duguinha dormindo no colo. Depois, não conseguiu dizer o endereço do hotel ao motorista do taxi, teve que mostrar o papel da confirmação. E olha que o motorista nem era americano, era moreno, com cara de mexicano, indiano, boliviano, sei lá, estrangeiro é tudo igual.

O quarto fica no vigésimo - segundo andar. E se pegar fogo, como é que eu faço? As janelas não abrem. Mais essa, agora! Tem tevê, dessas grandonas. Estou com muito sono, vamos todos dormir. Ainda bem que a cama é super-larga, deu até pro Duguinha ficar no meio.

Acordo com a tevê. Douglas e Duguinha sentados na beira da cama, olham a tela. Muitos anúncios de carros, um mais bonito que o outro. Douglas resmunga algo que não consigo entender.

- Douglas, precisamos sair para comer, o Duguinha deve estar morrendo de fome.

Primeiras palavras em Nova Iorque, até que não foi mal. Saímos preparados para enfrentar o frio: suéteres, casacos, cachecóis, luvas. Lá fora a temperatura está amena, o sol está forte. Ficamos passando calor, mas aguentamos firme. Primeiro restaurante que encontramos, está escrito "Irish Bar and Food". Douglas comenta:

- Não gosto dessa comida.

Não corto o saco porque não tenho, mas duvido que o Douglas saiba o que é esse tal de "Irish". Depois vemos um "Zapata - Mexican Food and Drinks". Douglas examina o cardápio exibido na porta, e é mais sincero:

- Tacos, Burritos, Enchilladas... E eu sei lá que porra é essa?

Um nome conhecido nos salva: McDonalds. Entramos, e escolhemos pelas fotos. O gosto é parecido com o do Brasil, se é por isso não vale à pena vir à Nova Iorque, penso, mas não comento, porque o Douglas já está de pé, na porta. Duguinha sai com o saquinho de fritas na mão. O Douglas não podia esperar? Grosso!

Saímos caminhando, olhando vitrines. Não vejo nada demais. Olho pro alto, e sinto tontura. Um precipício invertido, como se eu fosse cair pra cima. Douglas vai conferindo a numeração das ruas. Quando fazemos o caminho de volta já está escuro. E damos de cara com a Times Square. Ficamos encantados com tanta luz. Douglas pega na minha mão. Acho que minha mãe tava certa.

Chegamos ao hotel tarde, porque viramos na rua 42 para o lado errado. Fomos andando, esperando chegar o número do hotel, mas nunca que chegava o "Irish". Desconfiamos que algo estava errado, e não deu outra: tivemos que voltar tudo de novo, e mais um pouco. Aonde já se viu uma rua com os mesmos números, prum lado e pro outro? Bando de despreparados.

O Duguinha deitou no meio de novo, e deixamos assim mesmo.

Pela manhã voltamos ao McDonalds. Depois andamos até o Central Park. Queria tanto ver o lugar em que mataram o John Lennon, mas como perguntar? Pedi ao Douglas:

- Pergunta, benhê?

- Perguntar pra quê? Coisa mais idiota!

Jurei nunca mais chamá-lo de benhê. Ignorante! Acabamos nos perdendo no meio do parque, isso nunca aconteceria no Ibirapuera. Devia ter placas em todas as línguas. Tipo "Times Square", e uma flechinha indicando a direção. De Times Square eu sei voltar pro hotel. Finalmente encontramos uma saída. Ainda é cedo, mas resolvemos ficar no quarto o resto do dia. Duguinha vendo tevê. Eu aproveito pra retocar o esmalte. O Douglas fica deitado, mãos cruzadas sob a cabeça, olhos fechados, deve estar pensando na outra. Desgraçado!

Outra vez McDonalds. É bom que nem no Brasil, mas toda hora, francamente! Voltamos a caminhar pelas ruas, e agora já entendemos o sistema: da Quinta Avenida pra cá, é W. Pra lá, é E. WE. Não esqueço, porque penso em WC. No fundo é tudo a mesma merda. O mesmo McDonalds. Já se passaram quatro dias. Como estará mamãe? Com certeza morrendo de saudades, a pobre.

Dona Iracema voltou da padaria. Guardou o leite na geladeira, ligou a tevê, foi para o quarto, tirou a roupa e voltou pra sala nua, nuínha, pelada. Sentou no sofá, e deu um suspiro de satisfação:

- Sei lá, eu devo ter um antepassado índio.

Último dia da viagem. À noite pegariam o vôo de volta. Saíram para comprar lembrancinhas. As lojas tinham tanta coisa que era até difícil escolher. Duguinha sugeriu:

- Ó, mãe, pra vovó Cema!

Uma blusa de moletom cor de rosa, com a Estátua da Liberdade desenhada em strass azuis. Ela ia gostar. Mamãe adora roupa chic.

Não estava com paciência para escolher um por um, então comprei logo uma porção de esferográficas, chaveiros e imãs de geladeira, todos com Nova Iorque como motivo. Ou New York, como eles dizem. O Duguinho escolheu três joguinhos de computador. Só não entendi o Douglas: com tanta coisa, foi me escolher um cd do Carlos Gardel! Deve estar surtando.

Saímos da loja com sacolas de bugigangas, e com fome. Douglas parou no meio-fio. Olhou pra cima, demoradamente, como se estivesse criando coragem pra se jogar, e anunciou:

- Hoje vamos comer comida de gente!

Entramos num restaurante que dizia "Italian Food". Um garçom moreno nos levou a uma mesa que dava para a rua, de onde poderíamos apreciar o movimento. Sem que pedíssemos nada, foi logo trazendo copos de água gelada. Será que cobraria por isso também? Os cardápios eram em inglês, mas não tivemos problemas:

- Spaguetti, please.

O garçom moreno perguntou, com sotaque:

- Vocês são brasileiros?

- Sim, por quê? Perguntou Douglas, se sentindo ameaçado.

- Por nada, é que eu sou argentino, entendo um pouco de português, se vocês tiverem alguma dificuldade é só me perguntar.

Agora aquele santo homem aparecia, no último dia! Douglas logo aproveitou:

- Eu tenho uma pergunta, pode ser?

- Claro, pode.

- Como é Buenos Aires?

O garçom me olhou, eu olhei para o Douglas, o Duguinho olhou pro garçom, todos querendo entender alguma coisa. O garçom esticou o pescoço:

- Como, cavalheiro?

- Buenos Aires, como é?

O garçom mostrou mesmo de onde vinha:

- Mucho mejor que Nueva York!

A comida chegou. Belos pratos de spaguetti com almôndegas, e bastante molho de tomate. Durante a comida perguntei ao Douglas que história era aquela de Buenos Aires, mas ele apenas me disse:

- Cosas de l'alma, benhê. Cosas de l'alma.

Ele tinha me chamado de benhê! No fim minha mãe teria razão. Pus mais um pouco de queijo no seu macarrão. Ele sorriu. Chamou o argentino, e caprichou no portunhol:

- Tienes um bom vinho?

- Por supuesto, muchacho!

O garçom trouxe uma garrafa de vinho tinto - argentino, lógico. Douglas serviu minha taça, a sua, e fez um brinde me olhando nos olhos:

- Ao nosso futuro, Malu.

Toquei minha taça na dele, agradecida. Me fazer feliz não era difícil.

No hotel, enquanto arrumávamos as malas, Douglas disse:

- Vou sair rapidinho, pra comprar mais um cd de tango.

Ele demorava. Abri a gaveta do criado-mudo, pra conferir pela última vez, e vi notas de cem dólares. Era o nosso dinheiro. Com que dinheiro Douglas compraria o cd? Talvez com o cartão de crédito, sosseguei.

Perdemos o vôo. Na polícia, ninguém me entendia. Voltei ao restaurante, implorei, e o garçom argentino me acompanhou à delegacia. Traduziu meu desespero: meu marido desaparecera, devia ter sido assaltado, talvez morto, talvez estivesse em algum hospital. Sentia meus olhos inchados. Duguinho estava assustado, encolhido numa cadeira. Os policiais me deram um copo com água, depois um guarda me levou de volta ao hotel. O gerente disse que não havia mais quartos disponíveis, estava tudo lotado. Nossas malas estavam no hall de entrada. Entrei em desespero, puxando os cabelos. Duguinho começou a chorar. Sem saber o que fazer, o policial colocou minhas malas na viatura e levou-nos à sua casa. Falou qualquer coisa em inglês com sua mãe, e voltou para o carro. A senhora falava um italiano rudimentar, mas a semelhança de algumas palavras me fazia entender quando ela falava "Calmate, calmate".

A polícia revirou delegacias, clínicas, hospitais, hotéis, pensões, dias e dias. Nós, na casa do policial. Angelo Benedetto. Divorciado. Alto. Loiro. Forte. Gentil. Sobretudo gentil.

Dona Iracema recebe a pensão do falecido marido. Fala com a filha pelo telefone, xinga o Douglas de imprestável, cafajeste, filho da puta.

Depois de algum tempo, o Angelo deu um jeitinho - lá também, lá também - e Malu acabou ficando. Não sabe fazer nada, a não ser cuidar do Angelo, tão diferente do Douglas. Inclusive, prefere música italiana.

Duguinha cresceu, e está com o US Army no Afeganistão. Malu reza pelo filho, pedindo para N.S.de Lourdes. De vez em quando se lembra do Douglas, e acha que ele vive pelos lados da Bombonera. Cosas de l'alma.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor