VEREDA
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Eduardo
Prearo
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Carta branca, os presidentes quase sempre tinham carta branca. Pensando nisso, virou à esquerda, depois a direita, e viu que havia chegado onde morava. Não havia mais muita absconsa, isso pertencia à juventude. Estava mesmo cansado, e sentira-se mais ainda quando alguém quisera dar-lhe o lugar no subviário. Vagal, pensara, como sou vagal e agora velhinho. Na verdade fora sempre velhinho, mas estava se descobrindo jovem. Achou-se, por uns instante s, um eterno preguiçoso, e a preguiça, como diziam, era a mãe da fome. Entrou onde morava, e veio-lhe à mente alguns momentos do dia em que desconhecidos sussurravam-lhe albergue. "Esse senhor é um albergue!" Claro que essas coisas são estúpidas alucinações, pensou. Tinha de pensar assim por que senão o que seria da sociedade e dele próprio? Talvez Dorian fosse um estúpido e não soubesse, afinal arrumava sempre encrencas para o seu lado por falta de atenção, por errar. Resolveu escrever um pouco; se bem que não era bom escritor, haja vista as crônicas do quarto poder que ele vez ou outra lia, sempre carregadas de uma lucidez assombrosa, deveras muito bem escritas. Era criança; sim, sentia-se uma criança. Parou de escrever inopinadamente e lhe bateu um certo sono esquisito. Sabia que amanhã, na realidade hoje, pois era madrugada, teria de novo de reinventar-se como batalhador. Talvez por osmose seria um vendedor que observara na adolescência ou um outro mais recente. Dorian q uase nunca era ele mesmo, e o ele-mesmo que achava que era havia dobrado uma esquina fazia um tempinho. O ele-mesmo de agora sentia algum conforto pregado em uma cruz, não se sabe como o quê, como um leão? O ele-mesmo de agora tinha vícios que desconhecidos apontavam através dos sussurros que obrigatoriamente tinham de serem vistos como alucinações. Curar-se delas era o quê? Matar a sede através de opiniões brilhantes que hora ou outra se dissipavam? Dorian já tivera a ideia de viver em um país diferente a cada três meses, e talvez fosse fazer isso mesmo no futuro, claro que trabalhando. Mesmo com a ideia obsessiva dos desconhecidos de que ele tinha de ir para um albergue, e olha que alguns até choravam clamando isso, Dorian ainda assim imaginava que um dia viveria em um palacete de quilômetros e com muita saúde para percorrer ele todo e lucidez. Claro que Dorian já havia ido dormir em um albergue, pois de tanto que achava que falavam, resolvera experimentar e fora bem trata do. Queriam lhe dar uma cadeira cativa ali. Mas Dorian, por mais que esse populacho desconhecido falasse, sentira-se mal, não conseguira pegar no sono, e não entendera por que algumas mulheres ficavam com o desodorante à vista. Essas pessoas daqui devem ser minhas semelhantes, pensara, e como sou desumano por rejeitá-las interiormente. Será que não percebo que isso acontece muito comigo? Trabalhar com amor, ser bem-sucedido, ser aplaudido como o homem do ano, ter amigos, saúde, paz, prosperidade sem deixar de ser humilde não parecia seu destino. Mas seria. Dorian não sabia ainda como. Dormiu e sonhou que era uma vaca leiteira que sonhava um dia conhecer o que havia além das porteiras. Essa vaca chamava-se Mia e Mia, numa bela manhã, percebeu que tinha asas. Então voou e ultrapassou as porteiras fechadíssimas, e viu que o mundo além dali era atraente, mas não havia lugar para ela. Sim, aquelas ruas, as cidades, os prédios, toda aquela gente humana, onde haveria ela de se enca ixar? Mia pousou em uma rua movimentada, e apavorada, ficou imóvel. Durante muitas horas ficou sem se mexer, até que de noite, quando a rua esvaziou, alçou novamente voo e voltou para a fazenda. Sim, havia lugar para ela além das porteiras, mas será que tinha de ficar sempre imóvel? Dorian acordou de súbito e tentou decifrar o sonho. Ele era a vaca que criara asas, que saira para o mundo e preferira voltar, achando tudo um tanto ou quanto estranho. Mas essa vaca não atravessara o oceano, não fora para a India, por exemplo; só voara até uma cidadezinha próxima e já estava filosofando. Que sonho esquisito, pensou. Cogitou-se jogando no bicho, fazendo uma fézinha. Mas o dia passou rápido, e Dorian não jogou em bicho nenhum. Ah, vai dar urso, pensou. O quarto poder aventava a notícia de que havia um psicopata solto nas ruas; isso, é claro, abaixo das notícias sobre previdência. De noite, Dorian escreveu. Por que escrevia tanta bobagem? Naturalmente que isso teria um efeito, algu m efeito que ele desconheceria até achar-se alguém que não sabia o que fazia. Tentou falar com alguém pelo telefone, mas criticariam-no, como sempre, e deixou-o cair. Não discernia, impressionante; pelo menos era isso o que ele dava a entender a alguns conhecidos. Mas esses desconhecidos e conhecidos discerniam deveras? Na verdade, Dorian achava que sim, o suficiente para serem respeitados. Foi olhar-se no espelho, mas estava o banheiro tão escuro que ele não se viu; estava em algum outro lugar aquela imagem dele próprio, chamando-o: Dorian, Dorian! Então não estou aqui, pensou, se a imagem não se reflete! A energia acabara ou então o interruptor que endurecera. Dorian olhou da janela: um blecaute. Agora estava tudo mudado; o caminho se tornara acanhado, mais até do que ele. Se houvesse uma vereda, mas isso não seria covardia? |
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