CULPA
DO CUPIM
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Carla
Deboni
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Poucos sonhos, muitos medos. E assim os dias de Dulcinéia iam sendo vagarosamente queimados, tal como a vela que se deixa lamber pela chama, ainda que fraca. Porque as maiores destruições são esculpidas com paciência e sem pressa. Longe de se parecer com a Dulcinéia de Toboso, a mulher se contentava com um Dom Quixote assalariado, cliente fiel dos botecos da vila e metido a Casanova de vez em quando. Quantas noites passara sozinha, com o marid o a encontrar os amigos que sempre precisavam de um conselho seu, uma força por um problema qualquer - dizia ele. E assim Dulcinéia ia engolindo as desculpas do homem. Talvez por medo de não encontrar um novo amor e se tornar uma refém da solidão. Não percebia que o vazio já se instalara em suas paredes, fazia parte de suas noites, e dormia ali no travesseiro intacto ao lado do seu, quando o marido a trocava por mais um sábado de distração qualquer. A verdade é que Dulcinéia deixava as pessoas entrarem em sua vida e não se permitia abrir mão delas, mesmo quando as relações, já esgotadas por desentendimentos ou armadilhas da rotina, eram mantidas por um frágil fio de consideração. Como uma porteira sempre aberta, sem manutenção, de madeira já apodrecida depois das longas investidas da chuva e dos cupins. O medo da perda era um fardo insuportável que a fazia se calar diante de grosserias, humilhações e zombarias. E os anos foram tirando os poucos sonhos e a saúde de Dulcinéia, que uma noite passou mal e, como sempre, estava sozinha. Ninguém viu. Ninguém socorreu. Ninguém percebeu. Só então a porteira se fechou. |
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