Tema 198 - PORTEIRA FECHADA
Índice de autores
LADRÃO QUE ROUBA LADRÃO...
Aline Carvalho

Já dizia um outro escritor que basta criar uma situação inusitada como, por exemplo, uma manada de búfalos irromper numa sala de concerto. Pois bem, tentemos.

O velhinho, viúvo, de família rica e suspeita, havia morrido. O apartamento seria vendido, de porteira fechada, vale dizer, com tudo o que havia lá dentro.

Quando fui ver, achei os copos de cristal. Cristal fumê, feito pela cristaleria local, dos quais eu tinha ganhado um jogo no meu casamento. Jogo que fiz a besteira de usar, quebrando alguns. Os copos saíram de linha, a única maneira de re-completar o jogo era comprar do espólio... e eles faziam parte do apartamento.

Mas não era para criar uma situação inusitada? Então... estávamos eu, o corretor, a filha mais velha do velhinho na cozinha. Os copos me espiavam de dento do armário.
O que pode acontecer de mais inusitado numa situação assim? O velhinho ressuscitar, e mandar alguém me dar os copos?

Uma cantora de ópera aparecer? Talvez cowboys do Arizona? Por acaso a baleia assassina do Sea World apareceria boiando na pia?

Mas que tal: eu, senhora bem conceituada na cidade, de repente, sem nenhum prenúncio de crime, pegar uma sacola de feira, dessas de vime, passar a mão nos copos e sair correndo pela porta da cozinha?

Era o que eu estava doida para fazer. Mas a presença do corretor e da filha órfã (embora ela parecesse muito satisfeita da vida) me impedia. Tinha que tirá-los da cozinha. Com um olhar oblíquo, localizei a cesta de vime no armário entreaberto da área de serviço. Quer dizer que os copos não seriam o único delito do dia, eu ia mesmo arrombar a porteira para conseguir o que desejava.

Simulei um mal estar. Tonta, me apoiei na cadeira e quis um copo de água. Ali, a água ainda era a que o falecido havia usado quinze dias atrás. Manifestei meu descontentamento e o corretor se ofereceu para buscar no supermercado ao lado. É claro que ele queria me agradar, pois a venda lhe renderia uma bela comissão. Desceu, 1 x 0.

Agora, a filha. Será que não havia um armário de remédio na casa? A tontura tinha se convertido em dor de cabeça... uma terrível enxaqueca pulsátil, que me cegava... Com uma amabilidade movida a interesse, ela saiu para procurar.

Movi-me rapidamente, apenas os saltos no piso frio denunciando qualquer movimento. Peguei a cesta. A porta entreaberta do armário facilitou. Cuidadosa mas rapidamente, fui colocando as fileiras de copos de cristal fumê, como os do meu casamento, no fundo da sacola.

Logo ela estava toda cheia. Poderia dar uma festa para cinqüenta convidados e todos teriam copos iguais, agora copos raros, fora de linha da cristaleria local.
Saí pela porta da área. Descia a escada agilmente (no elevador, poderia encontrar o corretor voltando com a água), imaginando a cara dos dois quando dessem pela minha falta, pela falta dos copos e da sacola.

Eu morava perto. A sacola ficou leve, carregada pelo tamanho do meu desejo. Antevia a louça no meu armário de portas transparentes... Cheguei à minha sala de jantar. Pus a sacola sobre a mesa e fui retirando fileira por fileira, para depois exibi-las como um tesouro.

O telefone toca na sala vizinha. Corro e vejo na bina o número do corretor. Nesse instante, um barulho ensurdecedor quase me mata de susto. Corro de volta à copa, justo a tempo de ver a manada de búfalos passando desesperada e esmagando todo o cristal fumê.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor