Tema 197 - TEMA LIVRE
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SINTONIA FINA
William H. Stutz

Foi de um tempo para cá, depois de um baita choque tomado em cerca eletrificada, que ele passou a sentir aquela coisa estranha. Era um mundo de vozes, músicas e propagandas sem fim em sua cabeça. No começo achava que estava endoidando, procurou recurso com a dona da farmácia que categoricamente afirmou que para aquele tipo de coisa tinha remédio não. Procurou benzedeira, curandeiro, pai de santo e nada de resolver.

Não sabia o que o incomodava mais, se eram as vozes e músicas ou as garrafadas que enjoou de tanto tomar por conta disso. Com o passar do tempo, bem aos poucos, foi acostumando e até dominando as transmissões. E não era que, pensava conformado, por conta da cerca de arame que apartava o touro holandês das novilhas e vacas paridas, tinha ganhado um rádio na cachola!

Amanhecia o dia, era só bater o calcanhar da botina no assoalho que lá vinha uma modinha sertaneja mansa e gostosa. Na toada que saía de casa rumo à roça de feijão era só dar um tranco no pescoço para esquerda que mudava a estação. Dominou tanto, amansou de vez o acontecido que não foi uma nem duas vezes que usou do expediente em benefício próprio. Durante a missa de domingo ou em conversa desgostosa, era só importunar que ele simplesmente sintonizava certa estação e punha atenção em música ou caso contado na cabeça.

Esquecia-se do mundo e das conversas sem interesse. Armava um jeito bem falso na cara, que podia ser de sério ou de achar graça, de tal maneira convincente, que todos acreditavam em sua atenção totalmente tomada pela prosa dos outros ali na roda. Qual nada, estava era longe, bem longe com suas ondas falantes, nem sermão de padre emplacava. Só padecia mais um pouco era em noite de chuva brava, cheia de coriscos e trovões. Pois aí a estática, os chiados e as vozes entrecortadas pareciam mais a mandioca fritando em panela de ferro.

Suplício. Pois de tudo mesmo, desligar de vez não tinha jeito. Nem a esposa e filhos que, por pior malfeito que fosse o tamanho da reclamação ou arte conseguiam tirá-lo mais do sério. A coisa aqui fora ficava preta? Era só quebrar, dar um tranco no pescoço pra lá ou pra cá que logo achava algo do agrado e se distanciava do mundo. Feliz da vida ficava, e nem de pilha fazia conta. Era uma bênção e aos anjos agradecia todos os dias. Tocava a vida, tocavam as rádios, ia-se.

Mas de hora pra outra, como que por castigo, as estações pararam de apresentar as notícias da vila e, pior, de tocar suas músicas preferidas. Não mais informavam se ia chover, fazer sol ou cair geada.

Deixou de ficar informado de quem nascia ou quem morria e, por conta disso, perdeu um monte de batizado e enterro. O que dava agora do começo ao fim era gente vendendo fé e milagre para todos os gostos e bolsos. Era milagre no cartão de crédito, à prestação, financiado sem juros em até 12 vezes. Quer um milagrezinho? Tem encosto trancando a sua vida? Deu gogo nas galinhas do quintal? Vaca secou leite? Deu coró no milho? Unha encravada? Espinhela caída? Amor não correspondido? Traição? Orai, bradavam em todas as estações. Temos milagres novinhos em folha, mas são mais caros, temos usados e devolvidos por defeito de fábrica que estão no queima, é coisa pouca, um arranhadinho na pintura, uma amassadinho na lata, um verso trocado, nada que comprometa de todo os resultados.

E não é que, de hora para outra, os mercadores da fé alheia compraram todas as estações de rádio! Achar uma sertanejazinha, uma moda caipira, estava difícil, cada vez mais difícil. Por onde andavam as modas do Zé Béttio? Vontade de ouvir um Bepe na sanfona, um Bis para o amor, um Loirinha linda. Um mundo de gente que queria muito escutar. Sumiram com eles. Simplesmente não cabiam naquela rádio cabeça.

Não adiantava dar tranco miúdo, curtinho, pois as estações estavam assim agarradinhas, bem pertinho umas das outras. Só mudavam mesmo eram os tons das pregações. Uns mais calmos, outros chutando baldes e santas. Mas a barganha era a mesma. O reino dos céus por um punhado de tostões era a promessa. Primeira classe no céu ficava bem mais caro, mas um barraquinho em alguma encosta de nuvem, apesar do risco de desabar em chuva, cabia no bolso de qualquer um, assim garantiam. Deus, misericordioso, avalizava, esbravejavam a plenos pulmões os mercadores.

Tudo era promessa. Dava para imaginar os pregadores, suando mais do que tampa de marmita a urrar a salvação em troca de milhão. Agora tormento mesmo, castigo dos céus, acontecia na sua vida de quatro em quatro anos. Aí não tinha saída. Era geral, de cabo a rabo, todas as suas estações cerebrais selecionadas que podiam ser do ombro ao cotovelo, da popa ao dedão do pé, de uma hora para outra, como que num macabro combinado para só, e somente só, aborrecer, passavam a transmitir a mesmíssima coisa.

Liquidação não mais de passagem para o céu, mas de promessas mirabolantes, de galanteios e bajulações para quem chamavam na maior intimidade de "meu povo". Uma fiada de gente, a melhor gente do mundo, pois era assim que eles próprios se davam a saber e conhecer. Uns que nunca passaram por baixo de uma sombra de pequizeiro ou de torta caviúna da região, falando como se morassem aqui a vida toda.

Chamando os outros por nome como se parente fossem. Até ele foi chamado de caro colega por um que nunca tinha visto nem em fotografia. Bem que desconfiou daquele um que não desgrudava do moço, sempre cochichando alguma coisa no ouvido dele quando alguém vinha chegando.

Melhor rádio dentro da cabeça do que bafo no pé de ouvido, pensava. Nesses períodos, de quatro em quatro anos, chegava a sentir falta da venda de milagres. Jurava que da próxima vez ia encomendar um, se é que tivesse sobrado no estoque. Assim acabava com a ladainha dessa gente sem rosto que falava como se íntima fosse e de pé junto jurava escola para onde nem criança tinha, ponte para onde córregos e riachos eram secos há anos, mata-burro por onde só ele e sua gente tinha de diariamente passar.

Nesses períodos de quatro em quatro anos dava um arrependimento danado do tropeço e de ter escorado na tal cerca. Nesses períodos, só havia um recurso: subia na gameleira imensa na porta de sua casa, chegava lá nas grimpas, nos galhos mais fininhos, levantava os dois braços para cima, abria bem os dedos. Assim conseguia sintonizar uma rádio com voz totalmente diferente, estrangeira, cheia dos "yes we can". Afinal, do palavreado das suas estações naqueles períodos, pouco se pescava também, tamanha a enxurrada de promessas. O proveito era pouco.

Pior, esse infortúnio durava meses, até beirando novembro. E depois disso, tudo continuava que nem sempre foi. As pontes, as escolas, as estradas, o médico-doutor, o postinho de saúde viravam fumaça na sua cabeça e aos olhos de todos da vila. Voltavam as promessas do paraíso - mas dessas já estava escolado. Quanto ao seu precioso voto, esse só dava mesmo para quem bem fazia.

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