Tema 197 - TEMA LIVRE
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A LANTERNA DO MARUJO
Pedro Brasil Jr.

A pintura da casa estava quase concluída e agora, começavam a surgir idéias na cabeça de dona Myrta. Enquanto observava o pintor deslizar o rolo na parede frontal, imaginava bem ali um banco onde poderia apreciar o movimento da rua nos finais de tarde.

- Um banco daqueles brancos! - Pensava ela bem alto.

- O que disse? - retrucou o pintor.

- Nada! Estou conversando comigo.

E foi assim que dias depois a Kombi do seu Aloisio era estacionada em frente ao portão e lá estava o belo banco todo em ferro e bem pintado a óleo.

Dona Myrta não hesitou e todas as tardes ficava sentadinha observando a passagem das pessoas. As cinco em ponto, Marialva vinha do colégio já com a camisa meio aberta de forma que suas formas podiam ser vistas de longe. A turma do barzinho do seu Quim dava uma pausa só pra ver a morena passar com os peitos em riste e a bundinha rebitada.

Dona Myrta suspirava.

- Ah! Os meus tempos da juventude. Eu também era boa, e como!

Depois, a gurizada passava em arruaça, atirando pedras nos outdoors e xingando a mãe sabe-se lá de quem.

Dona Myrta não gostava muito daquilo e logo vinha até a grade e ralhava.

- Vá dormir velha fofoqueira!!! - Gritavam em côro.

Faltavam dez para as seis e a hora da oração diária se aproximava. Dona Myrta levantou, olhou de um lado pro outro e ficou pensando no anoitecer que já chegava sorrateiro.

A noite era pra ela algo sem sentido. Não podia ficar olhando a rua, a não ser em bisbilhotadas esporádicas pela cortina. Assistir a novela não era a sua grande atração e sozinha em casa, tinha para si apenas a companhia de Orfeu, um gato preto que foi chegando de mansinho e montou acampamento ali mesmo.

E foi numa dessas espiadelas pela cortina que dona Myrta teve outra grande idéia. Colocar uma lanterna próxima ao banco e ficar ali, mesmo com as muriçocas incomodando os ouvidos.

No dia seguinte cedo lá foi ela dar um giro pelas casas de ferragens. O que imaginara não conseguia encontrar. Achava lampiões de todos os tipos mas uma lanterna daquelas de antigos guarda-freios da Rede Ferroviária não tinha em lugar algum.

Alguém sugeriu um ferro velho, onde ela passou o dia e nada! O proprietário já tava com o saco cheio de tanto ela perguntar sobre a lanterna. Ele mesmo, pra se livrar, sugeriu um antiquário.

Dia seguinte cedo, lá estava dona Myrta no antiquário e de cara foi dizendo o que desejava e perguntando o preço. A atendente da loja abriu um sorriso e em seguida apresentou três modelos diferentes. Dona Myrta escolheu o exemplar que era todo banhado em cobre. Ficaria um luxo no seu pequeno jardim.

Apesar do preço, ela não hesitou e antes de sair da loja, a moça aproveitou para contar uma daquelas estórias de fantasma. Disse que o dono da lanterna era um marinheiro e que desde que morreu, vivia atrás de quem ousasse se apoderar de sua flamejante peça.

Disse inclusive que a lanterna só foi parar ali porque o antigo dono não agüentava mais as aparições do velho marujo.

Dona Myrta não deu importância e ainda lascou: Não tenho medo de fantasmas, filha! Tenho medo mesmo é dos vivos.

E lá estava a lanterna. Agora, com um pouco de querosene a chama iluminava o suficiente o local onde dona Myrta espreitava a vida alheia.

Aconteceu no entanto, que os malandros da redondeza decidiram espalhar um boato só pra sacanear com dona Myrta. E foram dizendo aos quatro ventos que ali agora era um bordel refinado.

Incontáveis clientes à procura dos prazeres da carne foram incomodar dona Myrta que a certa altura já estava com a vassoura em mãos.

Uma noite, enquanto ela dava um cochilo ali no banco, alguém a tirou dos sonhos batendo palmas. Ela olhou de rabo de olho e viu que só podia ser mais um daqueles idiotas que haviam se convencido de que ela agora era uma dona de bordel.

O homem insistiu.

- O que o senhor deseja?

- Minha lanterna!

Ela olhou bem no sujeito e foi gritando:

- Esta lanterna é minha! Comprei com o meu dinheiro e vê se não enche!

O sujeito olhou bem pra ela e disse:

- Volto pra pegar o que é meu! Volto sim!...

À noite, antes de dormir, dona Myrta sempre rezava. Havia gente maldosa que dizia que ela pedia pra dormir com tantos santos que acreditavam que todas as noites sua cama quebrava por causa do peso.

Precavida, tratou de fazer umas orações fortes e garrou no sono.

No silêncio da madrugada, acordou com um barulho vindo do quintal. Espiou pela cortina e viu o mesmo sujeito que desejava sua lanterna. Receosa, gritou, dizendo que ia pegar uma arma. O indivíduo não deu a mínima e foi pulando o portão com a lanterna numa das mãos.

Dona Myrta abriu a porta e foi até o portão. Ficou olhando o sujeito caminhar tranqüilo, como se não tivesse cometido nenhum delito. Gritou, esbravejou e acordou a vizinhança. Todos foram à rua ver o que acontecia.

-Ele pegou minha lanterna! É ladrão!

Os mais afoitos empreenderam uma corrida para pegar o larápio que continuava a caminhar lentamente e agora, com a lanterna acesa. Num instante, ao se aproximarem para pegá-lo, o homem empreendeu vôo e na escuridão passou a brilhar com as chamas da lanterna e desapareceu distante.

Contam que ninguém ficou por ali para discutir o fato. O que se sabe, é que o velho marujo havia realmente voltado para pegar sua lanterna e que dona Myrta, naquela noite, depois do ocorrido, levou quase uma hora para conseguir entrar em casa.

Dizem as más línguas que ela seguiu para dentro passo a passo, devidamente calculado, dando entender que, mesmo sem transparecer medo pelo que presenciara, ela havia feito ali mesmo na rua, todas as suas necessidades fisiológicas.

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