O ROSTO QUE NOS FALTA |
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Gil Ferreira |
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"Meu coração tem um sereno jeito, / E as minhas mãos, o golpe duro e presto, / De tal maneira que, depois de feito, / Desencontrado, eu mesmo me contesto...// Se trago as mãos distantes de meu peito, / É que há distância entre intenção e gesto; / E se meu coração nas mãos estreito, / Me assombra a súbita impressão do incesto...// Quando me encontro no calor da luta, / Ostento a agulha empunhadora à proa, / Mas o meu peito se desabotoa...// E se a sentença se anuncia bruta, / Mais que depressa a mão, cega, executa-a, / Pois que senão, o coração perdoa... A arte imita a vida, no poema de Chico e Ruy, que nos desnuda o espírito. É récita incidente no langoroso "Fado Tropical", que musicou a obra de João Cabral de Melo Neto - "Calabar, o elogio da traição". Oportunos os versos, a canção e o contexto - Invasões Holandesas - da peça, se falamos de alma brasileira: ali, no Arraial de Bom Jesus, forjou-se a nacionalidade, nos arquétipos raciais do branco Matias de Albuquerque, do índio Felipe Camarão e do negro Henrique Dias. E de tanto, o que terá restado? Pois é quando Matias, antes Governador de Pernambuco, retorna de Madrid - vivia-se o Domínio Espanhol - como comandante militar, que lhe sobrevém a saudade do lar. E sua lírica alma lusitana o teria levado a declamar o que nela ia. Entretanto, tê-lo-ia feito frente ao espelho, que lhe refletia não só o gládio e o arcabuz, mas também o rosto. Esse rosto que nos falta. Ou não sei que mais nos falta! Inútil clamar contra a espoliação branca, o negro misticismo das soluções mágicas, ou a indolência indígena. Assim nascemos, bom é que o saibamos, mas não que o choremos per omnia secula seculorum. Mais valerá nos recusarmos a espoliar e a ser espoliados; abdicarmos da incessante busca da panacéia instantânea para nossos males; e renunciarmos à preguiça dos feriadões e à expectativa do argumento do não-trabalho. Inútil pontificar, sob a etílica inspiração das happy-hours, que a estrutura colonial - a monocultura, a mão de obra escrava, o latifúndio, a produção enviada para além-mar - se perpetua: ontem o açúcar, hoje a soja; antes o escravo, depois o bóia-fria; lá o engenho gigantesco, aqui os hectares vazios; ontem o abastecimento das cortes, hoje as exportações subfaturadas. Mais valerá, pelo exercício consciente do voto - em idéias, não em nomes ! - exigir que esse quadro se inverta, Ad Majorem Brasiliae Gloriam ! Inútil bradar contra a persistência das Capitanias, hoje não apenas territoriais - Ah, os caciques e seus currais ...- mas também econômicas - Ah, os oligarcas de urbe et orbi , das lavouras e das forjas, mega-mascates ou giga-argentários. Mais valerá repudiar o preço injusto do que deixar-se explorar, adquirindo o supérfluo, mais para os olhos do vizinho que por necessidade. Que importa a quem vende que o preço aumente, se sempre haverá quem o pague ? Inútil lamentar não ter sido feudal o Condado Portucalense, como em Anglia et alii, que por isso se tornaram Estados Contratuais: pelo tributo do servo, a proteção do suserano. No taxation without representation, desde a Magna Carta de João-sem-terra (premonitor do MST ?). Direitos e deveres, essência da democracia. Por meu voto, tua ação em nome das idéias que eu defendo e tu representas. Não, não; em terras lusas, pelos sete séculos mouriscos, fez-se o Estado Patrimonial - a oligarquia das famílias; dos nobres a abjurarem o trabalho e a se devotarem às letras e artes; ou à navegação; pelo que, somos hoje um universo de doutores sem trabalho; e menosprezamos o não-bacharel; e idolatramos as paróquias, cartórios e igrejinhas - corruptelas das famílias. Aos irmãos, tudo; aos demais, a lei. Ou a morte. Que valerá lamentá-lo ? Mais valerá aprendermos o sentido comunitário da vida. E que o façamos de moto próprio, antes que premidos pelos requisitos de segurança que nos são impostos pela violência incontida das ruas e do campo. Com a qual pactuamos, desde a vista grossa sobre quem lança um dejeto à sarjeta, até a fuga da cena do crime, por medo do testemunho. Inútil clamar não termos sido Nação, por ter Lisboa imposto sua já sofisticada ordem jurídica à tribo centrípeta de degredados, selvagens e servos - nossos tetravós - , vindo sua homeostase a se fazer diretamente no estado notarial, paternal, assistencial. Mais valerá fazermo-nos Nação, aqui e agora. E não mais apenas na euforia do desporto ou na momesca manifestação folclórica. Mas no orgulho de nossa tropicalidade. Às favas, pois, a vergonha das origens; por isso nos dificultam hoje o ingresso em terras cujos filhos recebemos. Basta de auto-escárnio; de nos vermos como Dorian Gray., horrorizando-nos ante nosso próprio retrato - afinal, não pactuamos nossas almas com Lúcifer; a spit image que criamos de nós mesmos é apenas virtual, eis que não nos entregamos (ainda) à dissolução dos costumes. Todavia, parece estarmos próximos dela; a pornografia, a narcotraficância, a impunidade e a corrupção nos rondam. Verdade é que não têm a dimensão do Brasil. São obra de poucos. Mas ecoam, em altissonante falácia de generalização, como se impressas estivessem em nossas almas. E mais as agravamos, ao tentarmos resolvê-las pela ética do atalho - o jeitinho, o caminho mais curto, e finalmente a tritícea e circular iguaria napolitana. E por isso escondemos nosso rosto. Mais valerá oferecermos ao mundo, de uma vez por todas, o rosto que sabemos ter, que reflete, como no poema de Chico e Ruy, o sereno jeito de nossos corações e o golpe duro e presto de nossas mãos. Dos elementos de nossa identidade, já honramos de há muito o Hino e o Pavilhão; soerguemos a moeda, a duras penas; todavia, engatinhamos ainda, dentre outros traços, na preservação da última flor do Lácio. Mas chegaremos lá, sem medo de sermos brasileiros - e felizes. Principalmente se mais buscarmos com empenho o futuro que espelhará nossa grandeza, do que nos autoflagelarmos com desânimo pelo passado que reflete nossa rudeza.
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